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3.2.12

Pra legislar sobre o hífen?


Tenho inveja quando abro um dicionário de inglês e encontro as grafias online e on-line, up to date e up-to-date, non-return e nonreturnentre outras: tanto faz escrever com hífen ou sem hífen, juntando as palavras numa só ou deixando separadas… Não podia ser assim também em português?

Já declarei em diversas ocasiões meu total apoio ao novo acordo ortográfico, não por questões propriamente linguísticas, mas pela importância política que ele reveste, principalmente para que os setores mais chauvinistas da sociedade portuguesa abandonem para sempre a pretensão idiota de achar que são os donos da língua só porque ela tem o nome do país deles. Mas confesso que essa história de querer legislar sobre o uso do hífen me tira a paciência. Com a nova ortografia, bem que podíamos ter nos livrado dessa chatice, não?

Por que não liberamos de vez o uso do hífen e deixamos que as pessoas empreguem onde e quando bem lhes der na telha? Qual a justificativa para agora escrever “mula sem cabeça” sem hífen, quanto antes era “mula-sem-cabeça”? E por que antes se escrevia “microondas” e agora tem que ser “micro-ondas”? E, principalmente, por que não deixar que as duas formas sejam usadas sem medo nem estardalhaço?

As línguas românicas (italiano, francês, espanhol, português) sofrem há séculos com a tradição purista e academicista, que impõe sobre a língua uma paranoia de correção, um monte de regras anacrônicas que impede os cidadãos de se apropriar da língua, de sentir seu idioma materno como algo que lhes pertence de absoluto e pleno direito. No caso de nações surgidas do processo colonial, como o Brasil, esse mal se transforma em doença crônica, já que o ideal de correção está sempre do outro lado do mundo. Já nos países de língua inglesa, impera uma repulsa às academias de língua, que nunca brotaram na Inglaterra nem nos Estados Unidos. O resultado é que por lá, mesmo havendo (como em todo canto) os reacionários da língua, a aceitação das formas inovadoras é muito mais rápida e tranquila: a partir do momento em que essas formas começam a aparecer com frequência na fala e na escrita das pessoas mais letradas, elas automaticamente entram para o rol do que é certo e aceitável. Por isso, um texto erudito escrito em inglês é muito mais fluente, despojado e agradável de ler, ao passo que quem escreve em francês, espanhol, italiano ou português tem que evitar ao máximo as “marcas da oralidade”, como se fossem uma doença contagiosa, e produzir textos barrocos ou, no mínimo, parnasianos.

Mas é da Alemanha que vem o exemplo mais luminoso de democracia linguística. Foi aprovada em 1996 uma reforma ortográfica da língua alemã. Mas ela só é obrigatória para o ensino e a administração pública. Fora daí, todo e qualquer cidadão pode escrever como quiser, usando as diferentes opções ortográficas da tradição de sua língua. Será que não poderíamos fazer o mesmo por aqui, pelo menos no caso desse sinalzinho ínfimo, para que seus décimos de milímetro não tirassem o sono de tanta gente boa e honesta?

*Marcos Bagno - escritor, tradutor, linguista e professor da UNB.