Páginas

29.3.10

O pior crime

“Os sem-terra cometeram vários crimes além dos que [...] disse que eles precisam explicar.

O primeiro foi o de existir. Este poderia ser classificado como um crime menor, quase uma contravenção. Seria uma inconveniência tolerável, se não passasse disso. Mas quando, não contentes em existir, os sem-terra começaram a existir em grande número, a coisa tornou-se grave. Alguns não só existiam como também se manifestavam. Outros foram ainda mais longe: se transformaram em vítimas. Morreram, num claro desafio à ordem estabelecida. Em muitos casos, de tocaia, só para aparecer mais. Finalmente, deixaram para trás qualquer escrúpulo e cometeram um crime imperdoável: se organizaram. São justificados os protestos contra mais esta afronta. Organizando-se, os sem-terra mudaram as regras do jogo, demonstrando – além de tudo – falta de esportividade. Eram regras antigas, combinadas e aceitas por todos. Organizando-se, os sem-terra pisotearam uma tradição brasileira de fair-play, que é o termo inglês para ‘não esquenta depois a gente vê isso’. Enquanto não estavam organizados era fácil enfrentá-los, controlá-los e derrotá-los – ou pedir calma, o que era quase a mesma coisa. Organizados, eles ganharam uma força inédita capaz até de – nada detém a audácia destes marginais – dar resultado.

Mas o pior crime dos sem-terra, o que deve estar atrapalhando o sono [...], é o literalismo. Sua perigosa adesão ao pé da letra, sua subversiva pretensão de que a prática siga a teoria. É um crime hediondo, pois coage as pessoas a serem fiéis à sua própria retórica, o que no Brasil é antinatural. Como se sabe, todos no Brasil são a favor da reforma agrária. Fala-se da reforma agrária há gerações. Na saída da primeira missa o assunto já era a reforma agrária, e ninguém era contra. E vêm esses selvagens destruir todo um passado de boas intenções e melhores frases, querendo que nobre tese vire reles fato e princípio intelectual vire terra e adubo. E ainda pedindo pressa.
Polícia neles.”

(Luis Fernando Veríssimo)

Nenhum comentário:

Postar um comentário