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21.6.10

Direito e/na Literatura


No Brasil, crescem os estudos e as pesquisas acerca da interface entre o Direito e a Literatura. Tanto que, além de livros, há uma variedade de materiais, informações e textos disponíveis na internet, basta dar uma googlada, para ver que surgem excelentes artigos, eventos e grupos de pesquisas/estudos, a exemplo do grupo “Literato” e do programa “Direito & Literatura”.

Bueno – sem apelar a modismos de última hora –, estou a fim de dar atenção aos textos que façam relação entre o Direito e a Literatura, assim como, por conseguinte, tentar arriscar/fazer minhas próprias interfaces enquanto amadureço minhas excursões, digressões...

E, a medida que faço isso, começo a compartilhar, sempre que possível no blog, as minhas leituras (citando/indicando textos e autoria).

Para iniciar, indico o artigo de Andrea Almeida Campos, intitulado “Capitu, capitulou? Uma tentativa hermenêutica-contratual da in(fidelidade) na obra ‘Dom Casmurro’ de Machado de Assis”, em que se propõe a uma tentativa de hermenêutica de pactos silenciosos. Vejamos alguns trechos:

“Como trilhar com os dedos a tessitura do véu que encobre a face do mistério indevassável? Como engendrar-se pelas sombras do corpo que não se revela e tatua o seu perfil por passagens recônditas, inaugurando a ontologia pelo cheiro de seu perfume? Que chamem Hermes com os seus pés alados e que o seu vôo seja revelatório dos disfarces costurados pelo silêncio. Que o deus grego vele pela hermenêutica possível.

Dois homens, uma mulher e pactos inumeráveis. Verbais? Escritos? Melhor dizê-los: por vezes conscientes, sempre inconscientes. Interpretá-los é mergulhar no vácuo da alma humana, nos meandros das vontades hipotéticas. Cabe a Hermes a investigação da vontade real (voluntas spectanda) e os seus efeitos no mundo fenomênico. Hermes voa onde não habita o ar? Talvez a resposta do oráculo de Delfos seja a de que não há morada onde não entrem os deuses... Deixemo-lo entrar na sala de visitas de nosso querido personagem, Dom Casmurro, o Bentinho, em sua casa da Rua de Matacavalos, ali onde ele gozou a sua infância e a sua mocidade, casa da qual foi feita uma réplica em outro sítio, no Engenho Novo, tal e qual, e onde o Casmurro ancorou seus navios na madurez. Ali onde ele, criançola, conheceu Capitolina e, rapazote, apaixonou-se por ela. Capitolina, a Capitu, a moça de olhos de ressaca, aquela cujas intenções pareciam estar mergulhadas em estado de permanente embriaguez sem perda da consciência. Capitu altiva, ativa, determinada, forte, articulada, questionadora, insubjugável. Com olhos claros, intenções nebulosas, ‘olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. Estariam viciados, por natureza, os pactos por ela celebrados? Teriam esses, por destino, desembocar no erro essencial quanto à pessoa? Mas, estaria Bentinho não ciente, desde o início, do que seria o seu engano imaginado? Não teria sido, o erro a viciar o seu pacto com Capitolina, o fundamento de sua atração, de seu desejo inafastável? O que queria Capitu ao travar, desde a infância, com Bentinho, uma avença, essa que é sempre uma aventura a qual chamamos de amor? A esta indagação nem Freud responderia, pois o mestre de Viena saiu da vida sem conseguir explicar o que queriam as mulheres. Interpretação subjetiva dos pactos idílicos.

Bentinho e Capitolina se amaram desde os mais tenros anos, a paixão veio junto com os hormônios, ele havia completado quinze anos e ela quatorze. E desde os tenros anos foi Bentinho amigo inseparável de Escobar. Confiança e lealdade. A boa-fé como princípio fundante das relações de amor e da amizade. A boa-fé objetiva como norteadora da interpretação das intenções comuns do tríduo. Disse Aristóteles que o homem diferencia-se dos demais animais pelo uso da palavra. Esta possibilita-os construir a pólis, logo não seria forçoso deduzir que o homem diferencia-se dos demais animais por contratarem entre si através da palavra, mas não apenas através da palavra dita, muito, através das não ditas. Os contratos nascem do silêncio e podem chegar a ser expressos verbalmente, ou pelos signos da escrita, o que lhes facilita a interpretação objetiva. No entanto, há os que permanecem silentes, mas não menos vigentes, e os seus efeitos na tez humana podem ser avassaladores, bem mais difícil, no entanto, a sua tradução. E é esse exercício hermenêutico de contratos no silêncio, que nos propõe o Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis, o autor da obra Dom Casmurro.
[...]
Pois bem, a obra ‘Dom Casmurro’ não é, nem apenas, uma tragédia do adultério, não importa se realizado ou não, mas, possivelmente, desejado pelo protagonista, nem apenas, uma tragédia do ciúme, e sim, ambas, aglutinadas na construção de uma tragédia maior: a tragédia do desejo edipiano e seus pactos inconscientes. Há extrema ratio nessa interpretação, caro leitor? Mesmo que dela discordes, muito bem sabes que a regra hermenêutica-contratual preconiza que a obscuridade e a ambigüidade não podem desvestir os contratos de sentido sob pena de nulidade.

Capitu, capitulou? No abismo do indelével segredo feminino (e masculino), jogam-se pedras que nunca tocam o chão. Cabe a cada um de nós desvendar em si, e para si, o enigma irrevelado do con(tractum), do trato em conjunto. Quanto à hermenêutica da vida, essa, certamente, capitula e resta a Hermes redescobrir o princípio de prazer ao alçar seu vôo azul por sobre o humano insondável.”

Andrea Almeida Campos. “Capitu, capitulou? Uma tentativa hermenêutica-contratual da in(fidelidade) na obra ‘Dom Casmurro’ de Machado de Assis”. Disponível em Revista Espaço Acadêmico. Mar/2009.

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