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4.8.10

“Óbvio que não vivemos numa democracia.”

“É óbvio que não, nós temos uma aparência democrática...”, segundo o lúcido entendimento do jurista Fábio Konder Comparato.

Em entrevista concedida aos jornalistas Glauco Faria e Renato Rovai, da Revista Fórum, Fábio Konder Comparato expressou claramente seus pensamentos sobre a necessidade de efetivação dos mecanismos de participação direta, os entraves para a democratização da comunicação no Brasil e o poder das oligarquias na sociedade brasileira.

Eis mais alguns trechos desta entrevista, publicada pela Revista Fórum (edição 88):

Fórum – O senhor defendeu, em 2008, no aniversário de 20 anos da Constituição, uma revisão constitucional, que não fosse feita pelo próprio Congresso Nacional, mas por uma assembleia exclusiva. O senhor ainda acha que isso é possível? Por que não existe ainda uma mobilização da sociedade em torno dessa linha?

Fábio Konder Comparato - Porque a sociedade nunca se mobiliza para nada. Porque, na verdade, a tradição brasileira, no campo político e social, é a da passividade do povo. A única constante inabalável até agora, na política brasileira, é a oligarquia. Ou seja, um pequeno grupo de poderosos ricos que comanda, que manda, e “quem tem juízo tem que obedecer”. Como diz o ditado. De modo que a própria Constituição do Brasil é, em si, de mera aparência democrática. Na verdade, ela consolida a burocracia, a oligarquia que sempre existiu. Nós precisamos vencer esse obstáculo, e a vitória seria em consequência de duas coisas. Em primeiro lugar, uma mudança institucional, e em segundo, uma mudança de mentalidade social, porque o povo está habituado a isso. O povo, no seu conjunto, respeita o poder, e teme qualquer manifestação de rebeldia considerada desordem. Isto é, em grande, parte fruto de quatro séculos de escravidão. Agora, a mudança de mentalidade de um povo não ocorre em pouco tempo. É preciso um grande trabalho de educação cívica e de educação ética.

A minha proposta visava tentar romper o bloqueio oligárquico, mas não tive nenhuma ilusão quanto à possibilidade de ela ser aceita – aliás, até hoje não foi acolhida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), onde apresentei a proposta. Mas o fundamental não é que uma proposta desse tipo seja imediatamente aceita e sim que ela comece a ser discutida. E aí é que vai um pouco esse trabalho de educação cívica de mudança de mentalidade.

Qual é o maior poder numa sociedade política? Sem dúvida o de ditar a lei maior, a Constituição e de modificá-la. Quem tem esse poder? É o povo. Nenhuma constituição brasileira até hoje foi aprovada pelo povo. Até hoje, todas as constituições republicanas preveem como único órgão legitimado a emendar a constituição o Congresso Nacional, que é um poder exclusivo. Então, obviamente, não é o povo soberano, mas a nossa Constituição tem uma aparência democrática. Por exemplo, ela começa, logo no artigo I, no I parágrafo, que todo o poder emana do povo, que o exerce diretamente, ou por meio de representantes eleitos. Ora, democracia representativa em primeiro lugar sempre foi uma farsa no Brasil, porque o sistema eleitoral não dá uma representação do povo, dá uma representação parcelada, e muito desigual do eleitorado – eleitorado esse que é, como eu disse, fracionado em estados. O povo não pode ser fracionado em estados. O estado em si, a organização estatal, que pode ser dividida em estados. O povo não, o povo é uno e soberano. E além disso, pelo próprio mecanismo do sistema eleitoral, dá-se muito mais força, de um lado, a potentados locais, e de outro lado há figuras de expressão popular, muitas que não têm nenhum compromisso político maior, apenas tomar o poder e gozar dele.

Em segundo lugar, a democracia direta é uma farsa no Brasil. O artigo 14 da Constituição diz que o plebiscito e o referendo são manifestações da soberania popular, mas o povo só tem direito de se manifestar em plebiscitos e referendos mediante autorização e convocação do Congresso Nacional. É o que está no artigo 49, inciso 15 da Constituição. Então veja, nossa inventividade jurídica é extraordinária. Nós criamos uma figura de mandato única no mundo, em que o mandante só pode se manifestar se o mandatário lhe der autorização.
[...]
Fórum – O senhor diria que nós não vivemos numa democracia.

Comparato – Óbvio que não vivemos numa democracia. Democracia é, sobretudo, soberania popular. Soberania significa controle. Poder de controle significa tomar grandes decisões e fiscalizar, responsabilizar e destituir os representantes. O empresário que controla uma empresa não tem um poder meramente retórico ou simbólico. É ele que decide se vai continuar ou não com a empresa, os programas para o futuro. O povo brasileiro tem um poder semelhante? É óbvio que não, nós temos uma aparência democrática, mas a aparência é muito importante. É a mesma coisa que aconteceu durante a escravidão...

Fórum – Da mesma forma, essa democracia com esse tipo de representação, nesse caso, não é uma invenção brasileira, ela é o mesmo tipo de representação utilizada em muitos países...

Comparato – Não é uma invenção brasileira, mas a deformação aqui é muito maior do que a da grande maioria dos países. Muito maior, mas nunca atacada porque, para nós, sobretudo no exterior, é preciso manter as aparências.
[...]
Fórum – O senhor citou também, na questão da transição para a democracia, ou para a falsa democracia, a corporação militar junto com o poder judiciário, inclusive nessa questão da decisão do STF. O senhor acha hoje o poder judiciário o menos transparente dos três poderes?

Comparato – O poder judiciário sempre foi o menos transparente, mas ainda temos ultimamente tido uma evolução muito positiva. A partir da instalação do Conselho Nacional de Justiça, que não é um órgão de controle externo, porque a maioria absoluta dos seus componentes é de magistrados, acabamos abrindo a caixa preta e percebemos algo que os advogados já sabiam há muito tempo: o grau de corrupção do judiciário é enorme. E não se trata apenas de corrupção no segundo escalão. A corrupção atinge também os magistrados, veja os últimos fatos que foram revelados pelo Conselho Nacional de Justiça.

Há um duplo caráter no brasileiro, um dualismo, uma duplicidade lamentável. Para efeitos exteriores, nós somos sempre modernos, avançados, civilizados, mas é só a indumentária exterior, a indumentária de gala. Em casa, evidentemente, nós usamos trajes mais cômodos e adequados ao ambiente doméstico, ou seja, nós somos exatamente o contrário daquilo que nós aparentamos no exterior. É por isso que as mudanças no Brasil são mais lentas e mais penosas.

Fórum – Mas essas mudanças já são perceptíveis?
Comparato – Acho que elas são cada vez mais claras. Todo o problema agora é não errar na ação política. Nós não modificaremos o Brasil através de eleições no sistema atual e militância em partidos. Nós temos que educar o povo para que, desde a esfera local até o âmbito nacional, ele se organize e exerça a sua soberania e a defesa dos seus direitos fundamentais. Para começar, o povo brasileiro em geral não sabe o que é o direito, acha que direito é um favor, uma vantagem, e não uma exigência. Então nós temos que começar, e é por isso que, juntamente com outros professores, fundei em São Paulo, a escola de governo, que já tem 20 anos, nós temos que começar educando o povo, o povo mais pobre, em algo que é uma evidência patente.

Ou seja, você tem direito, não só à educação e à saúde, mas você tem o direito a não morrer de fome. Esse é um direito, não é uma vantagem que o governo te dá, através de Bolsa Família, ou outras coisas. É um direito seu. Oras, pra você defender o seu direito, você precisa se organizar com outros. Política se faz coletivamente, não individualmente. E a função do partido político do futuro, ou de organização política que tenha esse nome ou outro, não é de querer se servir do povo para conquistar o poder. É de educar e formar a consciência popular para que o povo, diretamente, exerça o poder de controle. Isso não significa que o povo vá governar, mas significa que ele vai controlar todos aqueles que governam.

Nesse sentido, por exemplo, tive a ocasião de propor à Ordem dos Advogados do Brasil de se introduzir no Brasil o recall, o referendo revocatório de mandatos eletivos. Ou seja, o povo elege e pode destituir, substituindo o velho impeachment. O que está hoje em discussão no Senado Federal é a proposta de emenda constitucional número 73, de 2005. Ainda aí, não tenho ilusões, porque é muito difícil de conseguir aprovação. Mas a discussão já entrou na agenda política. É claro que nós não vamos poder contar com o apoio de nenhum setor da oligarquia. Mas a grande vitória não consiste em ter, amanhã, de um dia para o outro, digamos assim, a introdução do recall no país, consiste em pôr o assunto na ordem do dia, isso tem que ser discutido.

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