Maria de Lurdes não queria ser estuprada
“Tá pedindo pra ser estuprada”, decretou um dos PMs, interrompendo a ronda noturna na boca da passagem de pedestre, sob o Eixão Norte. O outro PM torceu o pescoço, examinou a minissaia da mulher que passava, e achou que, sim, ela devia estar mesmo pedindo.
Mas não estava. Maria de Lurdes sentia-se nua dentro da roupa nova, esticava o pano para baixo. Inútil: a saia, comprada na véspera, insistia em ser mini demais, do jeito que Eustáquio queria.
“Quem é que entende cabeça de homem?”, murmurou Maria de Lurdes, descendo a passagem subterrânea. Pensava no namorado, um servente de pedreiro ciumento de chamar para briga quem mexesse com mulher dele, mas que três sábados antes parara diante da vitrine da Marisa, no Conjunto Nacional, com cara de cachorro vendo galeto assado girar em porta de padaria. Eustáquio precisou de meia-hora e dois chopes no Snob para confessar: o que ele mais queria era ver Maria de Lurdes naquela minissaia da vitrine.
“Uai, não era melhor eu sair pelada duma vez?”, estranhou Maria de Lurdes, azedando o terceiro chope do namorado.
Desde aquele sábado, Eustáquio andava meio distante. Alegava hora-extra na obra, faltava aos passeios no Conjunto e na Torre.
Resignada, Maria de Lurdes voltou à loja e comprou a minissaia em três pagamentos, sem juros. Passou meia-hora perguntando ao espelho do quartinho de empregada: “Esta sou eu?”. Até ficar convencida de que, sim, aquela era ela, e mais: que estava vestida assim só para o namorado, e que tinha ficado bonita, e que ninguém entende mesmo cabeça de homem.
E lá ia Maria de Lurdes, atravessando o Eixão para encontrar o namorado na obra e esticando a roupa. Devia estar quase chegando quando sentiu a faca no pescoço. “Fica quietinha, gostosa”, sussurrou o homem.
No IML, o legista olhou mais uma vez o corpo nu de Maria de Lurdes, depois a minissaia guardada no saco plástico, e concluiu, assinando o laudo: “Tava pedindo pra ser estuprada...”
Eustáquio só foi saber na segunda-feira. O jornal não informava o nome da morta, encontrada sem documento, mas descrevia o corpo e a minissaia, que ainda trazia pendurada a etiqueta da Marisa, por esquecimento da dona.
Não chorou porque nunca lhe ensinaram como, mas passou o resto da tarde encolhido ao lado do poço do elevador do prédio em construção, o capacete nos joelhos. Não houve quem passasse por ele sem comentar: “Tá pedindo pra ser mandado embora...”
Não estava. Mas foi assim mesmo.
Muito boa a história. Pena que não é só ficção. Situações como essas acontecem quase todos os dias e as pessoas, muitas vezes, ainda culpam quem é violentado e oprimido ao invés do opressor.
ResponderExcluirGostei muito do blog, das ideias expressas nesse e em outros textos. Estou seguindo.
Beijos