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2.12.10

Dura realidade de estudantes pobres na rede privada de ensino superior

Os estudantes, em geral, são trabalhadores. E também são “consumidores de curso” perante a empresa educacional. Há alunos que se surpreendem com o caráter nitidamente mercantil de alguns estabelecimentos universitários e se percebem, mesmo que de forma nem sempre nítida, como peças do mercado da qualificação. Podem ainda encontrar em seu estabelecimento universitário uma espécie de “grande colégio”, onde vêem a repetição de uma experiência que é frequente no ensino básico: a do conteúdo reduzido e facilitado, das notas benevolentes, da pouca reflexão e da falta de sentido no estudo.
[...] Assim, se queremos nos contrapor ao modelo mercantil, precisamos urgentemente recolocar a educação no campo dos direitos. Educação não é mercadoria nem favor, é um direito.

Essas palavras são da psicóloga e professora universitária Jaqueline Kalmus, autora da tese de doutorado “Ilusão, resignação e resistência: marcas da inclusão marginal de estudantes das classes subalternas na rede de ensino superior privada”, apresentada/defendida no Instituto de Psicologia da USP , sob a orientação da professora Maria Luisa S. Schmidt. (Cf. USP-Agência de Notícias. USP-Biblioteca Digital)

O estudo foi feito a partir de uma análise das legislações disponíveis sobre educação, além de entrevistas com estudantes oriundos de classes subalternas que estudavam, na época da realização da pesquisa, em universidades privadas da região metropolitana de São Paulo.

Entre outras revelações, a pesquisa mostra que estudantes pobres, que conseguem ingressar no ensino superior privado, apresentam dificuldades para se manter no curso, mesmo quando recebem bolsas de estudo. Isso ocorre tanto por questões financeiras como pelo baixo conteúdo educacional adquirido desde o ensino básico. Para Jaqueline, parte desses estudantes apresenta muita dificuldade para acompanhar o curso e as leituras propostas.

Logo, segundo a autora, esses estudantes se sentem vítimas de um engodo: apesar de terem passado por todos os estágios da educação – ensino fundamental e médio, além de um exame vestibular –, o conhecimento adquirido por meio dessa educação formal não foi suficiente para integrá-los plenamente na universidade. Ao mesmo tempo, o conhecimento de vida que essas pessoas têm muitas vezes é desvalorizado no ambiente universitário.

Além da baixa qualidade no ensino básico e do preconceito, a “mercantilização” da educação no Brasil é uma das responsáveis pelas dificuldades enfrentadas por estudantes pobres no ensino superior privado. Daí ser preciso pensar nesse caráter mercantilista da educação e em suas consequências, acredita Jaqueline.

Em entrevista à Revista Fórum, Jaqueline Kalmus falou mais sobre sua tese de doutorado, analisando os percalços que permeiam a vida de estudantes pobres na rede privada de ensino superior. Confira alguns trechos dessa entrevista.

Fórum - Conte sobre a produção de seu estudo. Como surgiu a ideia do tema?
Jaqueline Kalmus - O estudo é uma pesquisa de doutorado, desenvolvida entre 2006 e 2010. Meu interesse era investigar os sentidos que estudantes pobres da rede superior privada atribuem à sua passagem por essa modalidade de ensino. Queria saber quais os sonhos que são construídos ou impedidos, as formas de consciência, resignação e resistência, as repercussões subjetivas dessa passagem.
O tema surgiu do encontro de minha experiência como professora universitária com o conceito de “fracasso escolar relativo”, tal como definido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. O autor aponta a falácia da realização da democratização do ensino, que teria sido alcançada pelo prolongamento da escolarização da população. Se antes parte considerável dos pobres era excluída dos bancos escolares precocemente, agora os estudantes permanecem no sistema escolar, percorrem suas séries, graduações e obtém seus diplomas, mas nem por isso deixam a condição de subalternidade, já que muitas vezes acabam por obter no máximo uma formação precária e um diploma desvalorizado que não garante o ingresso e permanência no mercado de trabalho.
É claro que a realidade brasileira difere daquela estudada por Bourdieu; mas aqui também, sobretudo a partir da década de 1990, começamos a ver uma série de medidas que pretendem fazer com que os alunos atinjam graus mais elevados de escolarização, inclusive até o ensino superior, mesmo que isso não signifique uma verdadeira formação. Esse processo pode resultar em grande mal-estar, na medida em que os estudantes descobrem que o tempo que passaram na escola foi um tempo perdido, ou que foram vítimas de uma ilusão, já que o ensino básico não lhes forneceu os pré-requisitos necessários para acompanhar os cursos de uma universidade. É como se a faculdade os convidasse para entrar, mas, ao mesmo tempo, os expulsasse, pois os estudantes deparam com diversas dificuldades: de tempo, de dinheiro, de conteúdos...
[...]

Fórum - Que tipo de impacto o aluno mais pobre tem quando ingressa na universidade?
Jaqueline - Em geral, a entrada do estudante pobre no ensino superior é vista como uma grande conquista. Muitas vezes ele é o primeiro de sua família e de seu grupo social a fazê-lo. Ele então é o portador da esperança daquele grupo social. Mas muitas vezes o aluno não encontra na universidade a realização de seu sonho. Como já comentei, um dos impactos pode ser o de descobrir que não possui os pré-requisitos para acompanhar o curso e acaba se transformando, subitamente, num aluno “fraco”, mesmo que essa não tenha sido sua experiência anterior. Outro impacto pode ser o de descobrir que os conhecimentos que possui não são valorizados na universidade.
Mas há outras possibilidades. Os estudantes, em geral, são trabalhadores. E também são “consumidores de curso” perante a empresa educacional. Há alunos que se surpreendem com o caráter nitidamente mercantil de alguns estabelecimentos universitários e percebem-se, mesmo que de forma nem sempre nítida, como peças do mercado da qualificação. Podem ainda encontrar em seu estabelecimento universitário uma espécie de “grande colégio”, onde vêem a repetição de uma experiência que é frequente no ensino básico: a do conteúdo reduzido e facilitado, das notas benevolentes, da pouca reflexão e da falta de sentido no estudo.

Fórum - Quando o aluno se depara com dificuldades e se vê obrigado a sair da universidade, quais são os efeitos dessa decisão em sua vida mais tarde?
Jaqueline - Em geral, a interrupção dos estudos, seja na educação básica, seja na universidade, deixa marcas. A educação formal, que parecia ao alcance do estudante, se revela um sonho distante. E, por mais que grande parte dos pobres tenha consciência de que só participa do mundo estudantil nos lugares marginais – escolas e faculdades de “segunda linha”, que oferecem ensino precário e diplomas desvalorizados –, muitos se sentem responsáveis pelo seu próprio fracasso. Isso gera um verdadeiro mal-estar, um retraimento da pessoa: aparentemente, lhes deram as chances de conseguir uma vida melhor. Se ela não aproveitou isso se deve a problemas individuais, à falta de esforço, desvio de caráter... Mas na verdade, essas chances não passam de aparência. Há todo um processo de exclusão, que não é individual.

Fórum - Em sua tese, você usa o termo “mercantilização da educação” para se referir à parte do ensino superior no Brasil. Como reverter esse modelo mercantil?
Jaqueline - A partir da década de 1990 as políticas educacionais na América Latina passam por diversas reformas sob a influência do modelo econômico e político do neoliberalismo; é nessa época que os organismos multilaterais como o Banco Mundial passam a agir diretamente nas questões educacionais. Um exemplo disso são seus documentos com determinadas “recomendações” para a formulação de políticas públicas de educação, inclusive a superior.
Entre essas recomendações, de maneira condizente com o modelo, está a redução dos gastos públicos com a educação superior, que deveria ser financiado por outros agentes, e também a diferenciação das instituições entre “universidades de pesquisa” e as “universidades de ensino”. Os documentos incentivam a expansão dessas últimas, que deveriam ser universidades de baixo custo para a população de baixa renda.
Há inclusive a recomendação explícita para a ampliação da educação à distância e para o condicionamento do ensino superior a interesses do mercado. No Brasil, há uma reconfiguração das políticas para o ensino superior, que resulta em um processo de ampliação e mercantilização dessa modalidade de ensino. É no ensino superior que a retirada da educação do campo dos direitos, com sua inserção na esfera mercantil se faz sentir com maior intensidade: os alunos são “consumidores”; os reitores e diretores são “gestores” ou “a administração”; o ensino, o “produto oferecido”; eventuais conflitos entre alunos e instituição devem ser solucionados nos órgãos de defesa do consumidor. O mercado educacional movimenta enormes quantias: compram-se empresas educacionais e surgem novas transnacionais universitárias; vendem-se pacotes pedagógicos, livros didáticos, programas de ensino, tecnologia de educação à distância e, poderia dizer, vendem-se também diplomas a prazo.
Esse mercado é ainda sustentado pelo discurso da qualificação para o emprego, que faz com que enormes contingentes tidos como “desqualificados” façam das tripas coração para tentar alcançar as chamadas “competências e habilidades” técnicas, sociais, culturais e educacionais exigidas. Só que essas exigências vão se tornando maiores e, portanto, continuam inatingíveis para grande parcela da população. Bom, é justamente essa população que, enquanto consumidora de cursos, vai engordar o mercado da qualificação, do qual a educação superior faz parte. Assim, se queremos nos contrapor ao modelo mercantil, precisamos urgentemente recolocar a educação no campo dos direitos. Educação não é mercadoria nem favor, é um direito. Essa é uma luta que não nasceu hoje, mas que ganha nova dimensão no momento em que sua faceta mercantil ganha contornos mais explícitos.
[...]
Leia a entrevista completa na Revista Fórum.
A tese está disponível na Biblioteca Digital da USP.

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