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8.4.11

Bauman: “O medo e o mal”

O medo e o mal são irmãos siameses. Não se pode encontrar um deles separado do outro. Ou talvez sejam apenas dois nomes de uma só experiência – um deles se referindo ao que se vê e ouve, o outro ao que se sente. Um apontando para o “lá fora”, para o mundo, o outro para o “aqui dentro”, para você mesmo. O que tememos é o mal; o que é o mal, nós tememos

Mas o que é o mal? Essa é pergunta irremediavelmente viciada, embora teimosa e apresentada a todo momento, e estamos fadados a buscar em vão uma resposta a partir do momento em que é feita. A pergunta “o que é o mal?” é irrespondível porque tendemos a chamar de “mal” precisamente o tipo de iniqüidade que não podemos entender nem articular claramente, muito menos explicar sua presença de modo totalmente satisfatório. Chamamos esse tipo de iniqüidade de “mal” pelo próprio fato de ser ininteligível, inefável e inexplicável. O “mal” é aquilo que desafia e explode essa inteligibilidade que torna o mundo suportável... Podemos dizer o que é “crime” porque temos um código jurídico que o ato criminoso infringe. Sabemos o que é “pecado” porque temos uma lista de mandamentos cuja violação torna os praticantes pecadores. Recorremos à idéia do “mal” quando não podemos apontar que regra foi quebrada ou contornada pela ocorrência do ato para o qual procuramos um nome adequado. Todos os arcabouços que possuímos e usamos para registrar e mapear histórias horripilantes a fim de torná-las compreensíveis (e portanto neutralizadas e desintoxicadas, domesticadas e domadas – “toleráveis) se esfarelam e se desintegram quando tentamos esticá-los o suficiente para acomodar o tipo de maldade que chamamos de “mal”, em razão de nossa incapacidade de decifrar o conjunto de regras que essa maldade violou.

É por esse motivo que tantos filósofos abandonam todas as tentativas de explicar a presença do mal considerando-as projetos sem esperança – e se decidem por uma declaração de fato, um “fato bruto”, por assim dizer, que não pede nem admite outras explicações: o mal é.
Sem dizer com tantas palavras, eles relegam o mal ao espaço do obscuro das noumena de Kant – não apenas desconhecido, mas incognoscível; um espaço que se esquiva à investigação e resiste à articulação discursiva. Situado a uma distância segura dos domínios do compreensível, o mal tende a ser invocado quando insistimos em explicar o inexplicável. Nós nos apegamos a ele como o último recurso em nossa busca desesperada por um explanans (aquilo que explica). Mas transpô-lo à posição de explanandum (o objeto da explicação) exigiria avançar para além do alcance da razão humana. Só podemos aceitar a advertência de Candide e cultiver notre jardin (cultivar nosso jardim) e nos concentrar nos phenomena, nas coisas que podem ser percebidas por nossos sentidos e concebidas por nossa razão, deixando o noumenal no lugar a que pertence (ou seja, além dos limites da compreensão humana), de onde se recusa a sair e somos impotentes de tirá-lo.

A razão é um atributo permanente e universal dos seres humanos – mas o que ela pode ou não abordar depende do instrumental e da prática utilizados, os quais tendem a mudar com o tempo. Ambos crescem em tamanho e eficácia, e, no entanto, de modo frustrante e enraivecedor, quanto mais poderosos parecem ficar, mas impotentes se tornam as ferramentas da razão quando se trata de inserir o mal na ordem do inteligível. Ao mesmo tempo, quanto mais eficientes são as práticas, menos adequadas estarão para realizar a tarefa. [...]

Tudo isso se acrescenta à confusão já considerável e recobre o futuro de uma neblina ainda mais densa. E a neblina – inescrutável, opaca, impermeável – é (como qualquer criança lhe dirá) o esconderijo favorito do mal. Feita dos vapores do medo, a neblina exala o mal.

Zygmunt Bauman. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

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