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17.10.11

“Marx estava certo…”


Há muito tempo eu não lia a frase acima, colocada fora de uso depois da Queda do Muro de Berlim, quando se proclamava o fim da História.

Quem diz isso não é nenhum grupo de esquerda que é costume apresentar como dinossauro do comunismo, mas Nouriel Roubini, economista pragmático, ocupado em resultados, dono de uma das consultorias mais caras do mundo, um dos primeiros a anunciar a derrocada da economia em 2008.

Num artigo intitulado “A instabilidade da desigualdade”, publicado ontem na Folha, ele encontra a origem da crise que vivemos num antigo problema apontado por Karl Marx — aquela situação onde os ricos ficam cada vez mais ricos, os pobres, cada vez mais pobres, e a economia desmorona porque não consegue encontrar mercado para consumir a riqueza que produz.

Sua tese é que a economia mundial não encontrará um rumo para o crescimento e a estabilidade sem resolver a desigualdade que encontra na essencia do mercado capitalista, o que implica numa nova definição do papel do Estado e dos mercados.

Vamos ler: “Karl Marx exagerou em seus argumentos favoráveis ao socialismo, mas estava certo ao alegar que a globalização, o capitalismo financeiro descontrolado e a redistribuição de renda e riqueza do trabalho para o capital poderiam conduzir à autodestruição do capitalismo. ”

Em seguida, Roubini acrescenta:

“Como ele (Marx) argumentou, o capitalismo sem regulamentação pode resultar em surtos regulares de excesso de capacidade produtiva, consumo insuficiente e crises destrutivas recorrentes, alimentadas por bolhas de crédito e ciclos de expansão e contração nos preços dos ativos.”

Para Roubini a economia capitalista vive hoje uma clássica crise de superprodução, definida por Marx ao longo de sua obra. Com a globalização e o crescimento dos emergentes, o capitalismo tornou-se capaz de produzir uma imensa quantidade de bens e mercadorias que a humanidade não pode consumir em função de um problema antigo e conhecido — a desigualdade. Há mercadorias demais para salários de menos, em resumo.

Resultado: as empresas não investem, o consumo cai, o desemprego aumenta.

Retomando uma idéia que já surgiu no trabalhos de outros economistas de nossa época, Roubini diz que, no esforço para encontrar atalhos para distribuir essa riqueza, surgem as bolhas de crédito. Mas ele deixa claro que são paliativos, que adiam a solução e agravam o problema.

Reunindo a Primavera Árabe, os tumultos de Londres, os protestos da classe média de Israel, a luta dos estudantes no Chile, o movimento Ocupe Wall Street, em Nova York, ele afirma:

“Embora esses protestos não tenham um tema que os unifique, expressam de diferentes maneiras as sérias preocupações da classe média e da classe trabalhadora mundiais diante de suas perspectivas, em vista da crescente concentração de poder nas mãos das elites econômicas, financeiras e políticas.

As causas das preocupações são bastante claras: alto desemprego e subemprego nas economias avançadas e emergentes; capacitação profissional e educação inadequadas, entre os jovens e trabalhadores, o que impede que concorram no mundo globalizado; ressentimento contra a corrupção, inclusive em formas legalizadas como lobbies; e a alta acentuada na disparidade de renda e riqueza nas economias avançadas e nas emergentes.”

Para usar uma idéia de Marx, que emprega com as devidas adaptações de tempo e espaço, Roubini lembra que no mesmo processo que estimula o crescimento, a distribuição de renda nos países pobres e emergentes, a globalização destroi o futuro dos trabalhadores e da classe médias dos países desenvolvidos, que não conseguem emprego, perdem salários e também perdem benefícios, como aposentadorias e outros direitos conquistados. Roubini mostra que o empobrecimento dessas populações não é uma casualidade, mas uma necessidade imposta pela economia de mercado.

Contrariando a cartilha dos fanáticos do mercado, que consideram necessário aplicar políticas de austeridade e quebrar o Estado do bem-estar social para encontrar um novo equilíbrio, que implica em convencer operários alemães, franceses, italianos e espanhois a assumir um padrão de vida chines, indiano, brasileiro e quem sabe tailandes e paraguaio, Roubini mostra que uma saída racional exigiria medidas no sentido contrário.

Critica, especificamente, todo esforço para reduzir a folha de funcionários das empresas. Condena cortes de impostos (o célebre impostômetro). Também critica todo esforço para diminuir direitos trabalhistas e outras medidas semelhantes. Afirma que todas elas geram concentração de renda e que isso é ruim, porque diminui a demanda final. Leia:

“A desigualdade cada vez maior tem várias causas: o ingresso de 2,3 bilhões de chineses e indianos na força mundial de trabalho (reduz o número de empregos e os salários dos operários de baixa capacitação e dos executivos e de administradores cujas funções sejam exportáveis, nas economias avançadas); mudanças tecnológicas baseadas em diferenciais de capacitação profissional; a emergência inicial de disparidades de renda e riqueza em economias que antes tinham renda baixa e agora apresentam rápido crescimento; e tributação menos progressiva.

As companhias de economias avançadas estão reduzindo seu pessoal, devido à demanda final inadequada, que resulta em excesso de capacidade, e à incerteza quanto à demanda futura. Mas reduzir o número de funcionários resulta em queda ainda maior na demanda final, porque isso reduz a renda dos trabalhadores e amplia a desigualdade. Porque os custos trabalhistas de uma empresa representam a receita profissional das pessoas e com isso a demanda que elas geram, uma decisão que é racional para uma empresa específica pode ser destrutiva em termos agregados.

Resultado: os mercados livres não geram suficiente demanda final. Nos EUA, a redução nos custos trabalhistas diminuiu acentuadamente a participação da renda do trabalho no PIB. Com o crédito exaurido, os efeitos de décadas de redistribuição de renda e riqueza -do trabalho para o capital, dos salários para os lucros, dos pobres para os ricos, e dos domicílios para as empresas- sobre a demanda agregada se tornaram severos, devido à propensão marginalmente inferior a consumir entre as empresas/proprietários de capital/domicílios ricos.”

Roubini ainda diz que, como Marx “‘argumentou, o capitalismo sem regulamentação pode resultar em surtos regulares de excesso de capacidade produtiva, consumo insuficiente e crises destrutivas recorrentes, alimentadas por bolhas de crédito e ciclos de expansão e contração nos preços dos ativos.”

Sua conclusão: é preciso mudar o regime político para recuperar a economia: “qualquer modelo econômico que não considere devidamente a desigualdade terminará por enfrentar uma crise de legitimidade. A menos que os papéis econômicos relativos do mercado e do Estado sejam recolocados em equilíbrio, os protestos de 2011 se tornarão mais severos, e a instabilidade social e política resultante terminará por prejudicar, a longo prazo, o crescimento econômico e o bem-estar social.”

Quando imaginou o socialismo, e colocou a necessidade de acabar com o regime da propriedade privada, Marx pensou essencialmente num sistema onde a riqueza fosse melhor distribuída. Ao contrário do que imaginam os fanáticos do mercado, ele não diria que os gregos são vagabundos, nem que os italianos são preguiçosos ou que os espanhóis só pensam na hora da siesta. Apenas achava que um padrão de vida melhor não só era possível — mas necessário. Era preciso até trabalhar menos para que todos tivessem um padrão de vida decente.

Traduzido para os dias de hoje, Marx estava convencido de que seria preciso manter o padrão de vida dos gregos, dos italianos e dos espanhóis para que os chineses, indianos e brasileiros pudessem ter acesso a uma vida melhor. Isso exigia criar um novo regime — aquele onde os papéis do mercado e do Estado fossem recolocados em equilíbrio, como diz Roubini — onde a riqueza pudesse ser distribuída.

Não é preciso imaginar que Roubini resolveu deixar crescer o cavanhaque de Lenin nem que colocou ao ombro o fuzil de Leon Trotski nos tempos em que comandava o Exército Vermelho. Roubinie está dizendo que o mundo não vai sair dessa crise sem imensas mudanças, numa direção bem definida. Deu para entender?

*Paulo Moreira Leite. Jornalista.
Artigo originalmente publicado na Época, em 17-out-2011.

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