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2.4.12

Em qual verdade investiremos?


O rompimento com a ditadura militar no Brasil se efetuou por meio da transição de uma visão da política como enfrentamento e violência para um modelo do consenso, acordado em negociações entre os representantes políticos. O rito institucional do consenso, obtido nas negociações da Lei da Anistia (1979), do Colégio Eleitoral (1985) e da Constituição (1988), pretendeu forçar uma unanimidade de vozes e condutas em torno da racionalização da política, difundindo significações mais ou menos homogêneas sobre os anos de repressão. A oposição entre a razão política pacificadora e as memórias doloridas da repressão obstrui a expressão pública da dor e reduz a memória às emoções, acabando por construir um novo espaço social justamente sobre a negação do passado.

Era o marco da transição da ditadura para o Estado de Direito, visando superar – e mais do que isso, silenciar – o drama vivido diante da violência estatal.

Diante do Estado autoritário e da imposição do medo nos anos da ditadura, não bastava remover o chamado “entulho autoritário”, ou seja, era insuficiente modificar certas leis e estruturas de governo, reformar o sistema eleitoral e político, entre outras medidas institucionais. Eram ações limitadas para a criação de uma nova dimensão pública, o que excluía o movimento social de participação no “jogo”.

A análise da transição brasileira aponta a intenção de dividir a sociedade em parcelas previamente identificadas. O estabelecimento de grupos determinados como partícipes do novo regime ocorre mediante a exclusão de outros segmentos, silenciados em suas demandas. Entretanto, se considerarmos que na democracia o povo que a compõe não corresponde a parcelas socialmente determináveis, então, a democracia seria a prática política de sujeitos que não coincidem com qualquer parte do Estado ou da sociedade em particular, mas sujeitos que se transformam e se sobrepõem às parcelas representadas nas instituições.

No Brasil, o estado de exceção surgiu como estrutura política fundamental, prevalecendo como norma quando a ditadura transformou o topos indecidível da exceção – me refiro ao filósofo Giorgio Agamben, em sua obra Homo Sacer, e a indefinição do que está dentro e fora do ordenamento na exceção – em localização sombria e permanente nas salas de tortura. Também o crime de desaparecimento forçado é marcado pela ausência de um lugar definido, haja visto que a busca pela localização do corpo mobiliza os familiares das vítimas até hoje.

Figura jurídica anômala da constitucionalidade do Estado autoritário, seu produto mais discricionário no Brasil foi o Ato Institucional número 5 (AI-5). Este decreto ampliou os poderes de exceção do cargo de Presidente e extinguiu vários direitos civis e políticos (artigos 4º, 5º e 8º), especialmente o habeas corpus (artigo 10º). De fato, investiu o Estado da prerrogativa de manipulação dos corpos e, também, da vida matável dos cidadãos. O corpo passa a ser algo fundamental para a ação do regime. No caso do desaparecido político, sabe-se da existência de um corpo – desaparecido – e de uma localidade – desconhecida –, mas marcado pela ausência. Se a sala de tortura tem como resto de sua produção um corpo violado, o assassinato político produz o corpo sem vida. O grande aumento de desaparecidos políticos a partir do AI-5 demonstra como essa peça jurídica indicava a implantação do estado de exceção como normalidade.

Tendo sido o primeiro ato institucional sem data para acabar, o AI-5 foi extinto em dezembro de 1978, mas alguns de seus dispositivos foram, ao longo dos 10 anos de sua existência, inseridos na Constituição e na Lei de Segurança Nacional, ainda hoje vigente.

A violência originária de determinado contexto político, que no caso da nossa democracia seriam os traumas vividos na ditadura, mantém-se, seja nos atos de tortura ainda praticados nas delegacias, seja na suspensão dos atos de justiça contida no simbolismo da anistia, impunidade reafirmada pela decisão do STF em aceitar a inimputabilidade dos crimes de violação dos direitos fundamentais ocorridos na ditadura. Tais atos, por terem sido silenciados nos debates da transição, delimitam um lugar inaugural de determinada política e criam valores herdados na cultura, tanto objetivamente, quanto subjetivamente – nas narrativas, nos testemunhos, nos sentimentos e paixões dos sujeitos subtraídos da razão política. O medo do que não foi julgado, do que não se sabe a verdade, paira sobre a política brasileira como modo de coerção em favor de uma política do possível.

Nos aspectos sociais e nacionais, as marcas de esferas políticas originárias, como a sala de tortura e a transição consensual, se constituem como partes fundantes da democracia nascida após o fim da ditadura. O caráter maldito da tortura e o aspecto de impunidade da democracia incluem na atual memória coletiva brasileira o medo da violência e da fabricação do corpo nu dos torturados. A aceitação simbólica da anistia como uma lei de anulação das possibilidades de justiça, se configurou, seguindo à sala de tortura, como a exceção política originária na qual a vida exposta ao terrorismo de Estado vem a ser incluída no ordenamento social e político. A fidelidade ao princípio da não inscrição da matabilidade na norma mantém-se na lei ao anistiar os criminosos sem a apuração dos crimes e de seus agentes. A implicação da inclusão da vida na ordem, via sua exclusão, cria a indeterminação das distinções entre as esferas pública e privada.

A transição consensual criou uma falsa questão: punir ou perdoar?! Encontramo-nos diante do problema de como conviver com um passado doloroso em um presente democrático, administrando conflitos que não se encerraram com a mera passagem institucional de um governo de exceção para um democrático. Por que passadas décadas dos crimes há reclamação por justiça? Deve-se julgar e punir os responsáveis pelas violações aos direitos humanos? Ou eles podem ser perdoados em nome da reconciliação nacional?

Se alguns países latino-americanos se dedicaram à criação de novos investimentos em direitos humanos, o Brasil manteve-se como modelo de impunidade e não seguiu sequer a política da verdade histórica. Houve aqui uma grande ditadura, mas os arquivos públicos não foram abertos e as leis de reparação somente ouviram o reclamo das vítimas por meio de frios documentos; não deram direito à voz e não apuraram a verdade.

Enquanto os torturadores do passado não forem julgados e punidos, não teremos êxito nas políticas de diminuição da violência. Precisamos de uma Comissão da Verdade que apure as circunstâncias dos crimes, abra os arquivos da ditadura e proponha a punição dos responsáveis. Somente assim teremos como elaborar o passado e construir uma democracia respeitosa aos direitos do cidadão.

*Edson Teles é doutor em filosofia pela USP, é professor de filosofia política na Unifesp. Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, no qual foi publicado este artigo.