Vladimir Safatle*
Alguns acreditam que as discussões sobre filosofia moral
poderiam comportar o uso de categorias como “bem” e “mal”. Para estes,
perspectivas morais que não nos permitem distinguir de maneira segura “bem” e
“mal” seriam simplesmente niilistas. Há de se perguntar, no entanto, se tais
categorias são realmente necessárias.
Primeiro, o “mal”, como comumente empregado, não é um
conceito filosófico, mas teológico. Ele não tem função alguma nos debates sobre
filosofia moral, pois sua definição é vaga, imprecisa e completamente maleável
aos interesses do momento. Como categoria moral, é inútil por obscurecer a
compreensão das dinâmicas psicológicas em operação na constituição da vontade e
da ação. Ou seja, não serve para descrever a intencionalidade dos agentes. No máximo,
ele pode descrever as consequências da ação. Aplicado à análise das
consequências, ele deixa, porém, de ser uma categoria simplesmente moral para
adquirir uma profunda dimensão social e política, pois se trata da avaliação do
impacto das ações no interior da vida social em situações locais.
Se tentarmos defender a força explanatória do mal
enquanto descrição de estruturas de intencionalidade a partir, por exemplo, da
afirmação de que “mal” é esta perspectiva na qual desejo tratar outros sujeitos
não como fins em si mesmo, como sujeitos dotados de dignidade moral, mas como
meios para meus interesses, submetendo a lei ao amor-próprio (diga-se de
passagem, esta é a maneira tradicional de descrevermos a perversão), então
dificilmente poderemos defender a existência de uma relação intersubjetiva que
não seja má.
Em algum nível, o outro é sempre meio para meu interesse,
nem que seja interesse de reconhecimento, de acolhimento, de segurança, de
desejo e de afeto. Impedir genericamente o outro de ser tratado como meio é uma
proposição vazia de sentido que simplesmente inviabilizaria toda e qualquer
relação humana. Ou seja, ela não serve para descrever a dinâmica necessária e
corrente dos vínculos entre seres humanos. Lembremos que não é necessariamente
degradante ser o instrumento do desejo do outro. Certamente, muito pior é não
ser capaz de aparecer como objeto do desejo do outro.
Mas se afirmamos que o “mal” estaria profundamente vinculado
ao prazer consciente e deliberado de fazer o outro sofrer, então nos depararemos
com um interessante problema de causalidade. Ao dizermos que alguém fez outro
sofrer por ser ele ou ela uma pessoa má, explicamos realmente algo ou agimos
como aquele médico de Molière que, incapaz de descrever o motivo do ópio causar
sono, afirmava que, no fim das contas, o ópio causa sono por conter uma virtus
dormitiva, ou seja, ele causava sono por existir nele algo que causa sono?
“Mal” não seria, neste caso, uma virtus dormitiva, um significante vazio
que encobre a incapacidade de compreendermos a verdadeira dinâmica psicológica
que leva alguém a desejar deliberadamente o sofrimento do outro?
À sua maneira, Friedrich Nietzsche (1844-1900)
colocou bem essa questão, em Genealogia da Moral, ao afirmar que o ressentimento
e o medo eram as verdadeiras fontes do chamado “mal”. Nesse contexto,
“ressentimento” pode ser compreendido como uma forma patológica de lembrar,
forma de “sentir novamente” e constantemente algo vivido como violência. Uma
violência que deve ser continuamente lembrada apenas para dar vazão a um
sentimento de vingança que tende à reparação imaginária, e não a alguma forma
de transformação real da situação.
Diante do medo e do sentimento de não ter reagido à altura
contra uma violência ou uma pretensa humilhação, ruminando infinitamente a
injúria sofrida, as ações mais inconsequentes e destrutivas têm lugar. De uma
incapacidade inicial à ação, o ressentimento transforma-se em ação que visa
acertar contas com o medo de ser novamente “vítima” daquilo que desvela nossa
impotência. Pois sempre é melhor acreditar que alguém deve ser continuamente
culpado por não termos conseguido ser o que poderíamos ser.
Ou seja, uma perspectiva moral não deve se bater contra os
moinhos de vento do mal, importando de maneira despudorada conceitos que servem
apenas para a teogonia. Ela deve problematizar sentimentos concretos de medo e
ressentimento diante da dinâmica necessariamente trágica dos fenômenos da vida.
Em suma, o problema moral fundamental nunca foi o combate ao mal, mas o combate
ao medo e ao ressentimento.
*Vladimir Safatle. Professor da Faculdade de Filosofia da
USP,