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21.4.13

Da inexistência do mal


Vladimir Safatle*

Alguns acreditam que as discussões sobre filosofia moral poderiam comportar o uso de categorias como “bem” e “mal”. Para estes, perspectivas morais que não nos permitem distinguir de maneira segura “bem” e “mal” seriam simplesmente niilistas. Há de se perguntar, no entanto, se tais categorias são realmente necessárias.

Primeiro, o “mal”, como comumente empregado, não é um conceito filosófico, mas teológico. Ele não tem função alguma nos debates sobre filosofia moral, pois sua definição é vaga, imprecisa e completamente maleável aos interesses do momento. Como categoria moral, é inútil por obscurecer a compreensão das dinâmicas psicológicas em operação na constituição da vontade e da ação. Ou seja, não serve para descrever a intencionalidade dos agentes. No máximo, ele pode descrever as consequências da ação. Aplicado à análise das consequências, ele deixa, porém, de ser uma categoria simplesmente moral para adquirir uma profunda dimensão social e política, pois se trata da avaliação do impacto das ações no interior da vida social em situações locais.

Se tentarmos defender a força explanatória do mal enquanto descrição de estruturas de intencionalidade a partir, por exemplo, da afirmação de que “mal” é esta perspectiva na qual desejo tratar outros sujeitos não como fins em si mesmo, como sujeitos dotados de dignidade moral, mas como meios para meus interesses, submetendo a lei ao amor-próprio (diga-se de passagem, esta é a maneira tradicional de descrevermos a perversão), então dificilmente poderemos defender a existência de uma relação intersubjetiva que não seja má.

Em algum nível, o outro é sempre meio para meu interesse, nem que seja interesse de reconhecimento, de acolhimento, de segurança, de desejo e de afeto. Impedir genericamente o outro de ser tratado como meio é uma proposição vazia de sentido que simplesmente inviabilizaria toda e qualquer relação humana. Ou seja, ela não serve para descrever a dinâmica necessária e corrente dos vínculos entre seres humanos. Lembremos que não é necessariamente degradante ser o instrumento do desejo do outro. Certamente, muito pior é não ser capaz de aparecer como objeto do desejo do outro.

Mas se afirmamos que o “mal” estaria profundamente vinculado ao prazer consciente e deliberado de fazer o outro sofrer, então nos depararemos com um interessante problema de causalidade. Ao dizermos que alguém fez outro sofrer por ser ele ou ela uma pessoa má, explicamos realmente algo ou agimos como aquele médico de Molière que, incapaz de descrever o motivo do ópio causar sono, afirmava que, no fim das contas, o ópio causa sono por conter uma virtus dormitiva, ou seja, ele causava sono por existir nele algo que causa sono? “Mal” não seria, neste caso, uma virtus dormitiva, um significante vazio que encobre a incapacidade de compreendermos a verdadeira dinâmica psicológica que leva alguém a desejar deliberadamente o sofrimento do outro?

À sua maneira, Friedrich Nietzsche (1844-1900) colocou bem essa questão, em Genealogia da Moral, ao afirmar que o ressentimento e o medo eram as verdadeiras fontes do chamado “mal”. Nesse contexto, “ressentimento” pode ser compreendido como uma forma patológica de lembrar, forma de “sentir novamente” e constantemente algo vivido como violência. Uma violência que deve ser continuamente lembrada apenas para dar vazão a um sentimento de vingança que tende à reparação imaginária, e não a alguma forma de transformação real da situação.

Diante do medo e do sentimento de não ter reagido à altura contra uma violência ou uma pretensa humilhação, ruminando infinitamente a injúria sofrida, as ações mais inconsequentes e destrutivas têm lugar. De uma incapacidade inicial à ação, o ressentimento transforma-se em ação que visa acertar contas com o medo de ser novamente “vítima” daquilo que desvela nossa impotência. Pois sempre é melhor acreditar que alguém deve ser continuamente culpado por não termos conseguido ser o que poderíamos ser.

Ou seja, uma perspectiva moral não deve se bater contra os moinhos de vento do mal, importando de maneira despudorada conceitos que servem apenas para a teogonia. Ela deve problematizar sentimentos concretos de medo e ressentimento diante da dinâmica necessariamente trágica dos fenômenos da vida. Em suma, o problema moral fundamental nunca foi o combate ao mal, mas o combate ao medo e ao ressentimento.

*Vladimir Safatle. Professor da Faculdade de Filosofia da USP,