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18.9.13

O silêncio e a prosa do mundo

Ao relacionarmos silêncio e prosa, queremos, com isso, fazer o elogio da fala. É certo que a banalidade nos domina; mas é certo também que, sem a fala, seremos reduzidos a seres sem política, sem tolerância, sem poesia; em síntese, sem o humano

Em um ensaio sobre a prosa do mundo, o filósofo Maurice Merlau-Ponty observa que se fala na terra há muito tempo, mas três quartos do que se diz passam despercebidos. Podemos ir mais longe: poucas pessoas percebem, pensam e ouvem o silêncio. Sabemos apenas que silêncio sempre quer dizer mais do que o senso comum imagina e, por isso, ele nos propõe uma multiplicidade de problemas e questões. Sabemos, por exemplo, que não há um silêncio apenas: há o silêncio da perplexidade, do implícito, da reprovação, do subentendido, do que impede a fala de vir à expressão, o silêncio do torturado, o silêncio que asfixia o sentido das coisas. Há ainda o intolerável silêncio da política que faz de conta que ouve: são sistemas sociais, como escreve um dos conferencistas, que só podem durar se certas verdades, embora conhecidas de todos, nunca forem ditas publicamente. O silêncio é sempre a ausência de alguma coisa. Que sentido dar a tantos silêncios? Para falar desses e de outros silêncios e, portanto, da prosa do mundo, 25 pensadores do Brasil e do exterior estiveram no Rio de Janeiro – Biblioteca Nacional – e em São Paulo – Sesc Vila Mariana – de 14 de agosto a 9 de outubro.

Por que silêncio, por que prosa?
Os dados impressionam: pesquisadores afirmam que, só nos Estados Unidos, a partir da aceleração dos avanços tecnológicos, houve um aumento anual de quase 7 trilhões de palavras faladas. A pergunta é, então, inevitável: o que tanto se fala? Trata-se de uma civilização de falastrões, o que inclui, além de celulares, Facebooks, Twitters, chats(escritos na cadência da fala)? A linguagem técnica domina a fala e põe em lados opostos os números e as experiências? É o que nota George Steiner: “O alfabeto da ciência econômica moderna não é mais a palavra, mas sim a tabela, o gráfico, o número [...]. Grande parte da sociologia atual é iletrada, ou, para ser mais preciso, antiletrada. Quando tem de permanecer verbal, toma emprestado o que pode do vocabulário das Ciências Exatas. Graças à matemática, as estrelas saem da mitologia para figurar na tabela do astrônomo”. Qual é, pois, a importância do silêncio para as criações das obras de arte e do pensamento? Ou seja, como enfrentar o paradoxo? Se é graças à fala que o espírito se desenvolve e, assim, pensa, ao pensar, volta-se contra a fala prosaica e livra-se das evidências pronunciadas.

Mas atenção: ao relacionarmos silêncio e prosa,queremos, com isso, fazer o elogio da fala. É certo que a banalidade nos domina; mas é certo também que, sem a fala, seremos reduzidos a seres sem política, sem tolerância, sem poesia; em síntese, sem o humano. Do pensamento antigo (Epicuro, Platão, Sócrates) aos nossos dias, os exemplos de experiências da fala são infindáveis, e um deles merece especial atenção: trata-se de Karl Kraus, que, de 1910 a 1936, usou a fala como forma privilegiada para expressar seu pensamento em cerca de setecentas apresentações na Viena do entreguerras. Seguido muitas vezes por Wittgenstein, Schoenberg, Freud e grande público, em seu Teatro da poesia e do pensamento,Kraus exercia enorme fascínio, como nos lembra Steiner: “Como outros grandes profetas e vigias da noite, ele mantinha uma relação com a linguagem mais física, mais imediata, do que com qualquer outra capaz de ser posta por escrito”. Seu legado para a história do pensamento é inestimável, e a fala era uma de suas virtudes. Ao lermos seus famosos aforismos entendemos por que a sátira – uma das mais poderosas e demolidoras formas da fala – tende hoje a desaparecer, quando tudo é muito explícito e banal nos meios de comunicação: “Sátiras que a censura entende devem ser mesmo proibidas”.

Para tornar mais clara a relação entre silêncio e mutações, gostaria de tomar como exemplo a experiência de uma mutação que nos precedeu e que é narrada em um livro do Abbé Dinouart, L’art de se taire(A arte de se calar).Como nos esclarece uma notaintrodutória da edição francesa, Abbé Dinouart faz parte dos “eclesiásticos mundanos” do século XVIII que escreveram sobre temas variados. Dinouart é também autor de um livro “anônimo” intitulado Le triomphe du sexe(O triunfo do sexo). Essa nota é importante porque dá à sua obra um caráter mundano e político. Até certo ponto, o abade partilhou da corrente de filósofos iluministas e libertinos. Lemos na apresentação da edição de 2011 deL’art de se taireque é visível na obra uma mudança da questão do silêncio da fé para os costumes: “A obra reflete assim, à sua maneira, uma ruptura entre religião e moral [...]. A religião cessa então de envolver as condutas públicas e privadas, de lhes dar um sentido ao ver romper a aliança institucional entre linguagemcristã anunciando a tradição de uma verdade revelada e as práticas proporcionadas a uma ordem do mundo”. Dinouart relaciona o silêncio não ao “diálogo interior” com Deus, mas a uma teoria dos temperamentos e das paixões. Entre as dez espécies de silêncio, Dinouart elege a prudência como a privilegiada em oposição aos silêncios artificiais; entre eles, o silêncio da política, do humor, do capricho e da estupidez. Há ainda o silêncio complacente, debochado, o silêncio espiritual e o seu contrário, o silêncio de aprovação, o silêncio de desprezo e o de humor. Contra a febre de escrever e falar ele propõe o tempo do silêncio para criar o tempo da reflexão: “É no tempo do silêncio e do estudo que é preciso se preparar para escrever [...]. Por que se precipitar, levado pela paixão de ser autor? Espere. Você saberá escrever quando souber calar-se e bem pensar... O primeiro grau da sabedoria consiste em saber calar-se; o segundo consiste em saber falar pouco e moderar-se no discurso; o terceiro consiste em saber falar muito sem falar mal e sem muito falar”. Como o mundo estava em mutação, Dinouart tende muitas vezes a uma posição conservadora semelhante ao que acontece hoje diante das novas tecnologias. O que ele aponta como um vício e um perigo? Autores que escrevem mal porque escrevem muito “sem respeitar a religião e o Príncipe com excesso de livros e com os excessos dos livros” – enfim, o que justamente permitiu uma das grandes virtudes políticas do século: a liberdade da escrita e da fala, a literatura libertina, a proliferação de obras, muitas delas “anônimas” ou simplesmente copiadas e sem “direito de autor”. É um pouco o que vemos hoje.
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Apesar dos riscos, ou graças a eles, a fala é a grande linha que distingue o homem das formas dos seres animados e do silêncio das plantas. Da Teogonia de Hesíodo, passando por Aristóteles, até chegar à fenomenologia, o homem é definido como um ser da palavra “que colhe ecos onde antes havia silêncio”. O homem fala seu gesto, e o som da fala é destinado a “designar indiretamente o que o gesto ou a ação designa naturalmente”, como define Alain. O primeiro gesto da fala foi, portanto, um gesto de liberdade: no primeiro momento da fala, o “homem libertou-se do grande silêncio da matéria. Ou, para usar a imagem de Ibsen, ao ser golpeado com o martelo, o insensível minério começou a cantar” (Steiner). Ela é signo contra o esquecimento. Mas o excesso da fala hoje nos convida a pensar seu contrário – o silêncio– como uma forma de sobrevivência da experiência. Davi Ianomâmi, xamã e cultor da civilização da fala, nos ensina: “Os brancos desenham as palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento”.

*Adauto Novaes, jornalista e professor.