Ao relacionarmos silêncio e prosa, queremos, com isso, fazer
o elogio da fala. É certo que a banalidade nos domina; mas é certo também que,
sem a fala, seremos reduzidos a seres sem política, sem tolerância, sem poesia;
em síntese, sem o humano
Em um ensaio sobre a prosa do mundo, o filósofo Maurice
Merlau-Ponty observa que se fala na terra há muito tempo, mas três quartos do
que se diz passam despercebidos. Podemos ir mais longe: poucas pessoas
percebem, pensam e ouvem o silêncio. Sabemos apenas que silêncio sempre quer
dizer mais do que o senso comum imagina e, por isso, ele nos propõe uma
multiplicidade de problemas e questões. Sabemos, por exemplo, que não há um
silêncio apenas: há o silêncio da perplexidade, do implícito, da reprovação, do
subentendido, do que impede a fala de vir à expressão, o silêncio do torturado,
o silêncio que asfixia o sentido das coisas. Há ainda o intolerável silêncio da
política que faz de conta que ouve: são sistemas sociais, como escreve um dos
conferencistas, que só podem durar se certas verdades, embora conhecidas de
todos, nunca forem ditas publicamente. O silêncio é sempre a ausência de alguma
coisa. Que sentido dar a tantos silêncios? Para falar desses e de outros
silêncios e, portanto, da prosa do mundo, 25 pensadores do Brasil e do exterior
estiveram no Rio de Janeiro – Biblioteca Nacional – e em São Paulo – Sesc Vila
Mariana – de 14 de agosto a 9 de outubro.
Por que silêncio, por que prosa?
Os dados impressionam: pesquisadores afirmam que, só nos
Estados Unidos, a partir da aceleração dos avanços tecnológicos, houve um
aumento anual de quase 7 trilhões de palavras faladas. A pergunta é, então,
inevitável: o que tanto se fala? Trata-se de uma civilização de falastrões, o
que inclui, além de celulares, Facebooks, Twitters, chats(escritos na cadência
da fala)? A linguagem técnica domina a fala e põe em lados opostos os números e
as experiências? É o que nota George Steiner: “O alfabeto da ciência econômica
moderna não é mais a palavra, mas sim a tabela, o gráfico, o número [...].
Grande parte da sociologia atual é iletrada, ou, para ser mais preciso,
antiletrada. Quando tem de permanecer verbal, toma emprestado o que pode do
vocabulário das Ciências Exatas. Graças à matemática, as estrelas saem da
mitologia para figurar na tabela do astrônomo”. Qual é, pois, a importância do
silêncio para as criações das obras de arte e do pensamento? Ou seja, como
enfrentar o paradoxo? Se é graças à fala que o espírito se desenvolve e, assim,
pensa, ao pensar, volta-se contra a fala prosaica e livra-se das evidências
pronunciadas.
Mas atenção: ao relacionarmos silêncio e prosa,queremos,
com isso, fazer o elogio da fala. É certo que a banalidade nos domina; mas é
certo também que, sem a fala, seremos reduzidos a seres sem política, sem
tolerância, sem poesia; em síntese, sem o humano. Do pensamento antigo
(Epicuro, Platão, Sócrates) aos nossos dias, os exemplos de experiências da
fala são infindáveis, e um deles merece especial atenção: trata-se de Karl
Kraus, que, de 1910 a 1936, usou a fala como forma privilegiada para expressar
seu pensamento em cerca de setecentas apresentações na Viena do entreguerras.
Seguido muitas vezes por Wittgenstein, Schoenberg, Freud e grande público, em
seu Teatro da poesia e do pensamento,Kraus exercia enorme fascínio, como
nos lembra Steiner: “Como outros grandes profetas e vigias da noite, ele mantinha
uma relação com a linguagem mais física, mais imediata, do que com qualquer
outra capaz de ser posta por escrito”. Seu legado para a história do pensamento
é inestimável, e a fala era uma de suas virtudes. Ao lermos seus famosos
aforismos entendemos por que a sátira – uma das mais poderosas e demolidoras
formas da fala – tende hoje a desaparecer, quando tudo é muito explícito e
banal nos meios de comunicação: “Sátiras que a censura entende devem ser mesmo
proibidas”.
Para tornar mais clara a relação entre silêncio e mutações,
gostaria de tomar como exemplo a experiência de uma mutação que nos precedeu e
que é narrada em um livro do Abbé Dinouart, L’art de se taire(A arte de se
calar).Como nos esclarece uma notaintrodutória da edição francesa, Abbé Dinouart
faz parte dos “eclesiásticos mundanos” do século XVIII que escreveram sobre
temas variados. Dinouart é também autor de um livro “anônimo” intitulado Le
triomphe du sexe(O triunfo do sexo). Essa nota é importante porque dá à sua
obra um caráter mundano e político. Até certo ponto, o abade partilhou da
corrente de filósofos iluministas e libertinos. Lemos na apresentação da edição
de 2011 deL’art de se taireque é visível na obra uma mudança da questão do
silêncio da fé para os costumes: “A obra reflete assim, à sua maneira, uma
ruptura entre religião e moral [...]. A religião cessa então de envolver as
condutas públicas e privadas, de lhes dar um sentido ao ver romper a aliança
institucional entre linguagemcristã anunciando a tradição de uma verdade
revelada e as práticas proporcionadas a uma ordem do mundo”. Dinouart
relaciona o silêncio não ao “diálogo interior” com Deus, mas a uma teoria dos
temperamentos e das paixões. Entre as dez espécies de silêncio, Dinouart elege
a prudência como a privilegiada em oposição aos silêncios artificiais; entre
eles, o silêncio da política, do humor, do capricho e da estupidez. Há ainda o
silêncio complacente, debochado, o silêncio espiritual e o seu contrário, o
silêncio de aprovação, o silêncio de desprezo e o de humor. Contra a febre de
escrever e falar ele propõe o tempo do silêncio para criar o tempo da reflexão:
“É no tempo do silêncio e do estudo que é preciso se preparar para escrever
[...]. Por que se precipitar, levado pela paixão de ser autor? Espere. Você saberá
escrever quando souber calar-se e bem pensar... O primeiro grau da sabedoria
consiste em saber calar-se; o segundo consiste em saber falar pouco e
moderar-se no discurso; o terceiro consiste em saber falar muito sem falar mal
e sem muito falar”. Como o mundo estava em mutação, Dinouart tende muitas vezes
a uma posição conservadora semelhante ao que acontece hoje diante das novas
tecnologias. O que ele aponta como um vício e um perigo? Autores que escrevem
mal porque escrevem muito “sem respeitar a religião e o Príncipe com excesso de
livros e com os excessos dos livros” – enfim, o que justamente permitiu uma das
grandes virtudes políticas do século: a liberdade da escrita e da fala, a
literatura libertina, a proliferação de obras, muitas delas “anônimas” ou
simplesmente copiadas e sem “direito de autor”. É um pouco o que vemos hoje.
* * *
Apesar dos riscos, ou graças a eles, a fala é a grande linha
que distingue o homem das formas dos seres animados e do silêncio das plantas.
Da Teogonia de Hesíodo, passando por Aristóteles, até chegar à
fenomenologia, o homem é definido como um ser da palavra “que colhe ecos onde
antes havia silêncio”. O homem fala seu gesto, e o som da fala é destinado a
“designar indiretamente o que o gesto ou a ação designa naturalmente”, como
define Alain. O primeiro gesto da fala foi, portanto, um gesto de liberdade: no
primeiro momento da fala, o “homem libertou-se do grande silêncio da matéria.
Ou, para usar a imagem de Ibsen, ao ser golpeado com o martelo, o insensível
minério começou a cantar” (Steiner). Ela é signo contra o esquecimento. Mas o
excesso da fala hoje nos convida a pensar seu contrário – o silêncio– como uma
forma de sobrevivência da experiência. Davi Ianomâmi, xamã e cultor da
civilização da fala, nos ensina: “Os brancos desenham as palavras porque seu
pensamento é cheio de esquecimento”.
*Adauto Novaes, jornalista e professor.