4.6.10
Vandana Shiva: Biopirataria
Trechos do livro “Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento”, de Vandana Shiva*
Pirataria através das patentes
A segunda chegada de Colombo
[...] Quinhentos anos depois de Colombo, uma versão secular do mesmo projeto de colonização está em andamento por meio das patentes e dos direitos de propriedade intelectual (DIP). A Bula Papal foi substituída pelo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade, GATT). O princípio da ocupação efetiva pelos príncipes cristãos foi substituído pela ocupação efetiva por empresas transnacionais, apoiadas pelos governantes contemporâneos. O dever de incorporar selvagens ao cristianismo foi substituído pelo dever de incorporar economias locais e nacionais ao mercado global, e incorporar os sistemas não-ocidentais de conhecimento ao reducionismo da ciência e da tecnologia mercantilizadas do mundo ocidental.
A criação da propriedade por meio da pirataria da riqueza alheia permanece a mesma de 500 anos atrás.
A liberdade que as empresas transnacionais estão reivindicando por meio da proteção aos DPI, no acordo do GATT sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trade Related Intellectual Property Rights, TRIPs), é a liberdade que os colonizadores europeus usufruíram a partir de 1492.
[...] Essas noções de propriedade e pirataria são as bases sobre as quais as leis de DPI do GATT e da Organização Mundial do Comércio (OMC) foram formuladas. Quando os europeus colonizaram o resto do mundo pela primeira vez sentiram que era seu dever “descobrir e conquistar”, “subjugar, ocupar e possuir”. Parece que os poderes ocidentais ainda são acionados pelo impulso colonizador de descobrir, conquistar, deter e possuir tudo, todas as sociedades, todas as culturas. (SHIVA, 2001. p. 24-26)
[...] Os monopólios de DPI [direitos de propriedade intelectual] são justificados pela alegação de que eles são concedidos às grandes empresas pela sociedade, para que esta possa beneficiar-se com suas contribuições [...]. Em vez disso, o que temos é um exemplo de custos sociais e ecológicos gerados para a sociedade em geral e os agricultores em particular. Os DPI de variedades de culturas que estão causando um dono ecológico são um sistema injusto de total privatização dos benefícios e total socialização dos custos.
Os monopólios ligados a esse sistema injusto e irresponsável impede o desenvolvimento de práticas ecologicamente seguras e socialmente injustas. Além disso, eles impõem às pessoas um sistema agrícola que ameaça o meio ambiente e a saúde humana.
A imposição dos monopólios e dos produtos geneticamente modificados encontra-se ironicamente no cerne do sistema de “livre comércio” [...] que [...] traduz-se na liberdade total das corporações transnacionais de impingir produtos perigosos às pessoas. (SHIVA, 2001. p. 62-63)
Maltratando a vida
[...] O acordo TRIPs do GATT, ao permitir o controle monopolista de formas de vida, tem sérias implicações para a conservação da biodiversidade e do meio ambiente. [...]
Os impactos ecológicos mais significativos do TRIPs estão relacionados a mudanças nas interações ecológicas entre espécies causadas pelas liberações comerciais de organismos patenteados e geneticamente modificados (OGM). O TRIPs também afeta os direitos da biodiversidade, o que, por sua vez leva a transformações no contexto sociocultural da conservação. Alguns desses impactos são:
1. A disseminação de monoculturas, à medida que as corporações, com os DPI, tentam maximizar os retornos de investimentos aumentando as participações no mercado.
2. Um aumento da poluição química, à medida que as patentes de biotecnologia criam um incentivo para culturas agrícolas geneticamente modificadas e tolerantes a herbicidas e pesticidas[...]. 5. A erosão dos direitos tradicionais de comunidades locais à biodiversidade e, em conseqüência, um enfraquecimento de suas capacidades de conservá-la. (SHIVA, 2001. p. 113-114)
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*Vandana Shiva é formada em física, e trabalhou nesta área antes de passar à filosofia da ciência, abraçando as causas do meio ambiente e do feminismo, como militante e organizadora política. Em numerosos fóruns internacionais, como a Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992 (a Rio-92), ela tem se destacado como uma das mais contundentes vozes críticas da Revolução Verde (RV), das culturas transgênicas, e do processo de globalização neoliberal em que estes projetos se inserem, defendendo a biodiversidade, as práticas alternativas na agricultura, e formas de conhecimento exteriores à tradição da cultura ocidental. Na Índia, comandou protestos contra a introdução de culturas transgênicas que envolveram a queima de cereais tirados dos estoques da Monsanto Corporation. É líder de um movimento inspirado em Gandhi – o Satyagraha (“luta pela verdade”).
SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Tradução de Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
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