o pobre embriagado é contraventor; o rico é excêntrico... Marcelo Cunha
“Queria compartilhar com os leitores do Blog uma sentença que fui intimado essa semana negando meu pedido de arquivamento em relação à contravenção de embriaguez (art. 62 da LCP: "Apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo ou ponha em perigo a segurança própria ou alheia: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.").
Mesmo afirmando aos meus alunos que inúmeras pessoas ainda são conduzidas à Delegacia de Polícia, lavrado o TCO e instaurado o Processo Penal em relação a essa contravenção, eles ainda tinham dificuldade em acreditar, vez que trata-se de infração francamente seletiva e cujas cifras negras ultrapassam mesmo a função simbólica do Direito Penal. Na verdade, as pessoas que são levadas às "barras da justiça" são, invariavelmente, pobres (quase sempre mendigos que estão "incomodando" os transeuntes) que não têm qualquer acesso a assessoria jurídica. Dessa forma, tinha como atuação o pedido de arquivamento em virtude da falta da configuração das elementares típicas e mesmo da tipicidade material, não havendo lesão relevante ao bem jurídico protegido.
Nessa semana, entretanto, fiquei surpreso em, pela primeira vez, um Juiz não concordar com o pedido de arquivamento e remeter os autos ao PGJ. Como digo aos alunos, numa comparação futebolística, quando o Promotor de Justiça tenta punir o rico, deve bater o tiro de meta para ele mesmo, driblar todos os jogadores do time adversário (sem encostar em nenhum, senão, invariavelmente, haverá falta) e marcar o gol. Ao contrário, quando o réu é miserável, todo o sistema se movimenta sozinho e toca para o Promotor na linha do gol, só precisando "empurrar para dentro"...
Essa sentença abaixo demonstra bem isso (apesar de o processo ser público, decidi retirar o nome da parte e do Magistrado, para preservar a intimidade da cidadã e pelo comentário se referir ao sistema criminal, e não ao seu operador). SUGIRO AO AMIGO LEITOR QUE EFETIVAMENTE IMAGINE A BIZARRA CENA DESCRITA NO BOLETIM DA POLÍCIA (citado na sentença) E VERIFIQUE SE É MESMO CASO DE ATUAÇÃO DO DIREITO PENAL.
Registro, ainda, que a sentença é formalmente técnica, porém dotada de visível insensibilidade em relação ao que é efetivamente relevante ao Sistema Criminal e falta de concepção dos parâmetros mais comezinhos da criminologia crítica e seletividade penal. Além disso, caso levemos em conta o excesso de processos nessa unidade jurisdicional (sendo que as novas audiências estão sendo marcadas com uma demora média de 8 meses ou mais após a ocorrência do fato), verifica-se como o formalismo é tomado como um fim em si mesmo, sendo que esse processo fatalmente estará condenado à prescrição.”
Opinião e sentença publicadas, originalmente, no Blog O Radar da Impunidade Brasileira, pelo promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo.
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