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23.11.10

Giorgio Agamben: “Homo sacer”

[...] Protagonista deste livro é a vida nua, isto é, a vida matável e insacrificável do homo sacer, cuja função essencial na política moderna pretendemos reivindicar [...]. O estado de exceção, no qual a vida nua, era ao mesmo tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, constituía, na verdade, em seu apartamento, o fundamento oculto sobre o qual repousava o inteiro sistema político; quando as suas fronteiras se estufam e se indeterminam, a vida nua que o habitava liberta-se na cidade e torna-se simultaneamente o sujeito e o objeto do ordenamento político e de seus conflitos, o ponto comum tanto da organização do poder estatal quanto da emancipação dele.

[...] Festo, no verbete, sacer nons do seu tratado Sobre o significado das palavras, conservou-nos a memória de uma figura do direito romano arcaico na qual o caráter da sacralidade liga-se pela primeira vez a uma vida humana como tal [...] ele acrescenta: Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que “se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida”. Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado de sacro.

[...] Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto, sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele – não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio. Subtraindo-se às formas sancionadas dos direitos humano e divino, ela abre uma esfera do agir humano que não é a do sacrum facere e nem a da ação profana, e que se trata aqui de tentar compreender [...].

Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera.

[...] Considere-se a esfera de significado do termo sacer, tal qual resulta da nossa análise.
[...] ele indica, antes, uma vida absolutamente matável, objeto de uma violência que excede tanto a esfera do direito quanto a do sacrifico. Esta dupla subtração abre, entre o profano e o religioso, e além destes, uma zona de indistinção, cujo significado procuramos justamente definir. Nesta perspectiva, muitas das contradições aparentes do termo “sacro” se desfazem.

[...] É como se toda valorização e toda “politização” da vida (como está implícita, no fundo, na soberania do indivíduo sobre a sua própria existência) implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, é então somente “vida sacra” e, como tal, pode ser impunemente eliminada. Toda sociedade fixa este limite, toda sociedade – mesmo a mais moderna – decide quais sejam os seus “homens sacros” [...].

[...] Por isso o campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão. A questão correta sobre os horrores cometidos nos campos [de concentração] não é, portanto, aquela que pergunta hipocritamente como foi possível cometer delitos tão atrozes para com seres humanos; mais honesto e sobretudo mais útil seria indagar atentamente quais procedimentos jurídicos e quais dispositivos políticos permitiram que seres humanos fossem tão integralmente privados de seus de seus direitos e de suas prerrogativas, até o ponto em que cometer contra eles qualquer ato não mais se apresentasse como delito (a esta altura, de fato, tudo tinha se tornado possível).

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I.
Tradução Henrique Burigo. Ed.UFMG, 2002.

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