Cristóvão Feil: Você compra e usa o coltan?
Um grande problema dos primeiros cérebros eletrônicos foi o aquecimento dos circuitos. As velhas trapizongas precisavam funcionar em ambientes assépticos e refrigerados. Um dos motivos de serem tão volumosos e lentos, entre outros. O problema foi resolvido pela ciência. Os computadores ficaram menores, mais leves e mais velozes. A solução veio do emprego de um metal raro chamado coltan (fusão dos minerais raros columbita e tantalita), um eficiente condutor, capaz de resistir a temperaturas elevadas e que se resfria rapidamente com o uso de pequenos coolers embutidos em desktops e laptops. Hoje, o coltan está presente nos telefones celulares, notebooks, naves orbitais, estações espaciais, mísseis e demais armamentos modernos, bem como nos consoles de games infantojuvenis. É conhecido como o ouro azul, já que seus minerais valem cerca de 300 dólares/quilo in natura.
Mas se a ciência resolveu o impasse tecnológico da informática em geral, o mesmo não aconteceu com as decorrências morais e legais da extração, fabricação e uso do coltan. A valiosa substância está envolvida numa nuvem de crimes: assassinatos, golpes de Estado, máfias internacionais, limpeza étnica, guerras tribais, etc.
Quem diria que o nosso inocente computador caseiro traz sangue coagulado na sua composição ou que o PlayStation 3 das crianças participou de massacres de pequenos órfãos antes de morar na sua casa?
As reservas mundiais dos minerais que formam o coltan - cerca de 80% delas - estão nas areias da República Democrática do Congo (ex-Zaire), terra do líder africano Patrice Lumumba, assassinado em 1961. Na luta sangrenta pela posse e comercialização da riqueza natural se envolvem mercenários, tribos autóctones, exércitos nacionais regulares, populações urbanas, governos centro-africanos, fornecedores de armas e munições, máfias locais e máfias internacionais, pequenas gangues, escroques, políticos profissionais e líderes partidários. Na raiz das guerras civis que varrem ou que varreram Serra Leoa, os dois Congos, Angola e Ruanda (4 milhões de mortos e outros milhões de refugiados) está a cobiça por diamantes, petróleo, cobre, madeiras, ouro e os dois minérios para fazer o coltan. Movimentos rebeldes e disputas tribais, durante a Guerra Fria eram financiados pelo menos por um dos lados (não raro, os dois): Estados Unidos/OTAN e o Pacto de Varsóvia/União Soviética. Da década de oitenta até os dias de hoje, esses movimentos buscam financiamento nos recursos naturais de valor internacional, onde o coltan adquire cada vez mais importância estratégica.
É longo e poderoso o circuito que vai da extração mineral, processamento, transporte, fusão do metal coltan e a comercialização para os grandes consumidores como a Dell, HP, Sony, Nokia, Toshiba, Apple, etcetera, só para ficar nas linhas de produção de computadores, laptops e telefones celulares, sem esquecer a eletrônica das grandes montadoras mundiais, os fabricantes de aviões, de armamentos e de componentes para a indústria espacial e militar.
Paira uma mega sombra de suspeita sobre os produtores de alta tecnologia hoje no mundo, justamente pela necessidade de se identificar a origem do coltan usado nas suas traquitanas e gadgets, todos símbolos dourados do ponto mais alto da civilização da razão e do método científico, mas que estão indelevelmente marcados pelo sangue e o suor de milhões de inocentes e vítimas da corrida mundial pelo valor.
Existe um protocolo de certificação da origem do coltan africano, ao qual os governos ocidentais e principalmente os desenvolvedores de novas tecnologias precisam aderir, respeitar e cumprir. Não se trata de mais uma burocracia inútil, mas uma fórmula de mitigação do crime organizado e um mecanismo de distensão nos movimentos separatistas, tribais e de sublevação estimulada pelos contrabandistas de armas e drogas.
Como diz o jornalista e escritor Misha Glenny, autor da obra McMáfia, "há uma interação complexa entre porções regulamentadas e desregulamentadas da economia global". Sem que o cidadão comum saiba, involuntariamente ele está vinculado a grandes indústrias criminosas, com elos tão estreitos que ele mal pode imaginar o quanto lhe é comprometedor. A criminalidade tece teias invisíveis para bem além da sua atividade oculta e o cidadão que se acha distante destes laços pode já estar enredado sem sequer suspeitar.
Cristóvão Feil, sociólogo, blogueiro/redator do Diário Gauche, no qual está o artigo originalmente públicado.
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