A obra de Agamben faz uma incursão epistêmica no direito e na política pelo viés da vida humana. Ela tenta captar (e capturar) uma tensão muito pouco percebida pela qual o direito e a política ocidentais existem correlacionadas com a captura da vida humana. Neste ponto, Agamben dissente de Foucault ao afirmar que a biopolítica não é uma característica da modernidade, mas algo inerente à política ocidental desde suas origens. Embora concorda com Foucault que a modernidade expandiu a biopolítica de forma capilar ao tentar governar de forma útil e produtiva, objetivando-a para tanto como um mero recurso natural.
Agamben afirma esta tese tomando como referência uma figura arcaica do direito romano, homo sacer. O homo sacer era uma figura jurídico-política pela qual uma pessoa, ao ser proclamada sacer, era legalmente excluída do direito (e consequentemente da política da cidade). Tal condição de sacer impedia que ela pudesse ser legalmente morta (sacrificada), porém qualquer um poderia matá-la sem que a lei o culpasse por isso.
O homo sacer é a vida abandonada pelo direito. É o que Walter Benjamin denominou de pura vida nua.
A particularidade do homo sacer é que ele é incluído pela exclusão e excluído de forma inclusiva. Esta figura paradoxal captura a vida humana pela exclusão ao mesmo tempo em que a inclui pelo abandono. É uma vida matável por estar fora do direito, mas por isso mesmo ela não pode ser condenada juridicamente. Está exposta à vulnerabilidade da violência por ser desprovida de qualquer direito, sendo que tal vulnerabilidade se deriva de um ato de direito que a excluiu.
O homo sacer é um conceito-limite do direito romano que delimita o limiar da ordem social e da vida humana. Nele transparece a correlação entre a sacralidade e a soberania. Ambas são estruturas originárias do poder político e jurídico ocidentais porque revelam os dois personagens que estão fora e acima da ordem: o homo sacer e o soberano. O homo sacer não só mostra a fragilidade da vida humana abandonada pelo direito, mas também, e mais importante, revela a existência de uma vontade soberana capaz de suspender a ordem e o direito. Tal poder só poder ser exercido desde fora da ordem e além do direito. O que homo sacer revela é a existência do soberano como figura essencial do direito ocidental e da sua ordem política. O soberano existe porque tem o poder de decretar a exceção do direito, ou seja, suspender o direito para decretar a existência da vida nua. Só um poder soberano, que esteja fora da ordem e acima do direito, tem o poder de decretar a suspensão do direito para os outros.
Haveria uma coimplicação originária entre a sacralidade da vida e o poder soberano. Esta coimplicação vai além da origem religiosa de nossas sociedades (do direito e da política), que é inquestionável e muito pouco levada em conta nas nossas sociedades secularizadas. Tal coimplicação manifesta uma cumplicidade persistente entre a exceção soberana e a vida humana. A vida humana é captura dentro da ordem na medida em que está presa à figura da exceção. Ou seja, a vida humana existe dentro do direito sempre com a ameaça potencial de ser decretada vida nua. A vontade soberana, que tem o poder de decretar a exceção, continua sendo constitutiva da ordem moderna, inclusive do Estado de direito. Tal prerrogativa coloca a vida humana, todas as vidas humanas, sobre a potencial ameaça da exceção. Isso quer dizer que, se por qualquer circunstância, uma pessoa ou um grupo populacional representasse uma ameaça, real ou suposta, para a ordem, eles poderão sofrer a suspensão parcial ou total dos direitos para melhor controle de suas vidas. A política da exceção jurídica foi e continua sendo amplamente utilizada pelo direito para controlar os grupos sociais perigosos para a ordem. A questão é quem tem o poder de decidir quem é perigoso e porque é perigoso. Quem tem poder de decidir a periculosidade de uma vida para a ordem é a vontade soberana. Já que qualquer um pode ser perigoso para a decisão soberana, por qualquer motivo por ela determinado, todos os seres humanos têm sobre si a possibilidade de que lhes seja decreta a exceção, e como tal reduzidos à condição de homo sacer.
A vida nua, expulsa da ordem pela exceção da vontade soberana está condenada ao banimento. Ela é uma vida banida e, como consequência, uma vida bandida. A consequência da exceção sobre a vida é o banimento. A vida banida da ordem se torna uma vida bandida. O bando, que também é uma figura jurídica do banimento, se transforma socialmente numa vida banida. Os banidos são bandidos porque foram expulsos da ordem e sobre eles se decretou uma exclusão inclusiva que os tornou vida nua.
Caim e o homo sacer
Soberano é o que tem poder de vida e morte. A fórmula que identificava o poder soberano por excelência, a do pater familias, vitae necisque potestas (poder de vida e morte) é o paradigma da soberania política ocidental. Ele manifesta a implicação da vida nua na ordem soberana. A soberania existe pelo poder que tem sobre a vida nua. Logo toda vida humana incorporada na ordem política existe numa relação de inclusão excludente, pela qual é incluída pelo direito mas poderá ser excluída pela exceção decretada pela vontade soberana. Uma vez que a vontade soberana não pode ser eliminada da ordem social, já que esta se origina daquela, nem o Estado de direito é garantia plena da abolição da vontade soberana, o direito protege a vida parcialmente, pois a cuida ameaçando-a. Nenhuma vida humana está livre da exceção, exceto a vontade soberana, que já é uma exceção soberana. Todas as vidas, em caso de emergência ou necessidade, estão vulneráveis ao estado de exceção. Nessa condição se manifesta a essência constitutiva do direito e da ordem, o poder soberano, e sua violência.
O homo sacer do direito romano revela a correlação que une a vontade soberana com a ordem social e a forma como a vida humana é captura dentro da ordem. A vida humana é sacra entanto está presa à exceção soberana. Tal relação torna a vida intrinsecamente frágil e permanentemente vulnerável. O paradoxal é que tal ameaça provenha daquele que a protege, o direito e a ordem, uma vez que na origem de ambos permanece latente a vontade soberana.
Embora Agamben não faça referência, podemos destacar a emblemática condição da figura de Caim como homo sacer. Uma narrativa sagrada que retrata muitos dos elementos político-teológicos do homo sacer. A narrativa expõe a tensão que conecta a vida humana com a vontade soberana, neste caso divina. Deus é a figura da soberania por excelência: só ele pode ter o poder, a potência efetiva de criar a vida. Daí que toda vontade soberana tenda a incorporar uma forma de poder divino sobre a ordem social. Caim, após matar seu irmão, foi amaldiçoado, sofreu o banimento divino: “agora, és maldito e expulso do solo fértil que abriu a boca para receber de tua mão o sangue do teu irmão” (Gen 4,10). Nele opera o dispositivo da soberania sobre a vida que só Deus tem, mas que a vontade da soberania política também reclama para si. Porém, no caso de Caim, a exceção que o torna banido é decorrente de ter derramado o sangue do irmão. Ele, ao matar o irmão, assumiu para si o poder sobre a vida do outro. Poderíamos dizer que Deus decreta sobre ele uma exceção da exceção, o banimento da soberania, a exclusão inclusiva de toda violência fratricida que opera como vontade soberana contra a vida do outro. Caim, que agiu com a violência do soberano ao condenar seu irmão à morte, colocou-se como tal fora da relação ética da lei, impôs a violência como nova ordem.
Na realidade, o banimento divino dá sequência à decisão soberana já tomada por Caim de colocar-se acima da vida humana. Já que soberano e homo sacer estão, por razões opostas acima e fora da lei, Caim ao agir com violência soberana se colocou de fato como soberano da vida acima da lei, neste caso divina. Só que a lei divina é essencialmente ética, não está referida à ordem mas existe na defesa da vida. A lei divina não defende um direito, mas anula a necessidade de qualquer direito, uma vez que se confunde com a ética. Uma ética que dispensa o direito. Nessas circunstâncias Deus o condena a Caim a experimentar as consequências da vontade soberana que ele decretou, ou seja, a condição de ser homo sacer.
Ainda, a narrativa de Caim tem um outro giro inesperado e contraditório para a vontade soberana do direito e a política. Conta a narrativa que Caim tomou consciência de sua culpa, reconheceu sua condição de banimento. O que está retratado exemplarmente no texto quando Caim diz: “Vê, hoje tu me banes do solo fértil, terei de ocultar-me longe de tua face e serei um errante fugitivo sobre a terra: mas o primeiro que me encontrar me matará” (Gen 4,14). Quase todos os componentes do homo sacer estão neste versículo. Porém a resposta de Deus a esta nova condição de Caim, a de um soberano banido e arrependido, inverte a lógica da soberania sobre a vida banida, que a incluí pela exclusão. Em vez de manter as consequências do banimento e da exceção sobre Caim, ou seja, a matabilidade de sua vida sem consequências legais ou teológicas, Deus decreta: “Quem matar a Caim será vingado sete vezes. E Deus colocou um sinal sobre Caim a fim de que não fosse morto por quem o encontrasse” (Gen 4,15). Deus decide proteger a vida banida que renunciou a agir com vontade soberana sobre a vida dos outros. Estamos perante uma espécie de nova forma de ordem da vida. Caim, que foi banido por agir com violência soberana, é protegido pela mesma soberania divina que o baniu. Tem um sinal próprio que protege sua vida. É uma segunda exceção da exceção. Uma exclusão das consequências nefastas do banimento sobre a vida humana de quem renunciou a agir como soberano dos outros. Uma espécie de suspensão da vulnerabilidade da vida humana inerente ao banimento e à exceção. A vontade divina, que é soberana sobre a vida por definição, protege esta em todas as circunstâncias. Protege contra os soberanos que a ameaçam; por isso decretou o banimento de Caim como soberano da violência, mas também protege a vida dos banidos que decidem abandonar sua condição de soberanos dos outros.
Há uma relação explícita e estreita entre a vida humana e a soberania divina, só que ela inverte a lógica da soberania política. Esta protege ameaçando pela exclusão-inclusiva da vida humana, já que a vida dos outros pode se tornar uma ameaça para a ordem. A soberania divina não se sente ameaçada pela vida humana, mas defende a vida humana de todas as ameaças possíveis, inclusive as do soberano. Em ambas soberanias há um vínculo estreito que as conecta com a sacralidade da vida, vínculo amplamente destacado por Agamben. A sacralidade da vontade soberana é decretada para obter o poder de banir as vidas indesejáveis. Porém a sacralidade decretada pela vontade divina é para proteger a vida em todas as circunstâncias possíveis. O homo sacer se torna frágil e vulnerável perante a vontade do soberano, porém sua sacralidade garante a defesa de sua vida perante a vontade Divina.
Artigo do filósofo Castor Ruiz
Publicado originalmente no IHU On-Line - Ao evento Tópicos Especiais II: Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo da vida humana”
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