Conrado Hübner Mendes*
Quando o STF invalida uma lei ou lhe dá nova interpretação,
opositores ocasionais da decisão costumam alegar que o tribunal interferiu
indevidamente na esfera legislativa. Não foi diferente no caso recente sobre
antecipação do parto de fetos anencéfalos: ao reconhecer a constitucionalidade
dessa prática, o STF teria invadido a prerrogativa do Congresso de elaborar
normas jurídicas. O próprio ministro Lewandowski, em voto vencido, argumentou
que “não é dado aos integrantes do Judiciário promover inovações no ordenamento
normativo como se parlamentares eleitos fossem”.
Essa crítica se inspira numa leitura tradicional de dois
princípios adotados pela Constituição brasileira: a separação de Poderes,
arranjo pelo qual se busca prevenir o abuso de poder; e a democracia, ideal
político que almeja institucionalizar um governo do povo. Cartilhas de Direito
ensinam que a fusão dos dois princípios, na prática, confere ao Parlamento
eleito, e só a ele, a função de legislar e aos outros dois Poderes, o papel
subordinado de aplicar o Direito. Portanto, segundo essa sabedoria
convencional, um tribunal que legisla romperia simultaneamente com esses dois
princípios - primeiro, porque não lhe caberia legislar; segundo, porque não é
eleito pelo povo.
O controle judicial de constitucionalidade, é bem verdade,
complica um pouco essa fórmula simples e didática. Afinal, permite que juízes
revoguem uma lei quando a julgam incompatível com o texto constitucional. Para
nos tranquilizarem, aquelas cartilhas dizem que tal ato de insubordinação ao
Parlamento é necessário em nome da supremacia da Constituição. Tal atividade de
controle, defendem, não faria do tribunal um “legislador positivo”, que cria
normas, mas apenas um “legislador negativo”, que se limita a vetar certas
normas emanadas do Congresso. Estaria preservada, assim, a integridade da
separação de Poderes e da democracia.
A má notícia é que essa equação, aparentemente tão bem
ajustada na teoria, não funciona. Não por má-fé de juízes, mas por simples
impossibilidade prática. E enquanto usarmos tal equação para observar o
controle judicial de constitucionalidade, essa função continuará a ser uma das
mais mal compreendidas das democracias contemporâneas.
O STF, no exercício dessa competência, legisla o tempo todo,
com maior ou menor visibilidade e intensidade. Algo comum, diga-se, a toda
Corte Constitucional no mundo. Seja quando revoga uma lei e explica seus
parâmetros ao Congresso, quando estabelece a interpretação válida de uma lei e
elimina outras interpretações plausíveis, ou quando diagnostica a omissão do
Legislativo e ocupa o vazio normativo, está atribuindo significado à
Constituição, uma atividade essencialmente construtiva. Sem eufemismos, cria
normas jurídicas e regula os atos dos outros atores políticos. Não tem outra escolha:
é isso que lhe pede a Constituição e é o que, bem ou mal, vem fazendo, tanto
nos casos mais polêmicos, como o da anencefalia, quanto em outros de menor
saliência.
A divisão de trabalho entre tribunal e Congresso não obedece
a uma fórmula estanque, oscila conforme os movimentos da política. Esse é um
fenômeno dinâmico observado em qualquer regime democrático que, como o
brasileiro, reserva espaço relevante ao controle judicial de
constitucionalidade. Portanto, à medida que o STF se expande na política brasileira,
processo gradual e contínuo há pelo menos 15 anos, torna-se mais urgente
perdermos a inocência sobre a natureza do seu papel.
Nossa Carta Magna e nossa prática institucional aboliram o
monopólio da legislação. A função de criar normas é compartilhada, não
exclusiva do Congresso. Não há que perguntar, pois, se o STF pode legislar.
Ainda giramos em falso ao redor dessa pergunta e desperdiçamos muita energia
crítica nesse custoso debate. Melhor começarmos a perguntar quando, como,
quanto e por que o STF deve legislar. Obviamente, não deve legislar como se “parlamentares
eleitos fossem”, para usar as palavras de Lewandowski. Seu papel é fazê-lo a
conta-gotas, de forma cirúrgica e oportuna, em face das ações e, sobretudo, das
omissões injustificadas do Legislativo.
A superação do mito de que aplica passivamente a
Constituição e o reconhecimento dessa forma especial de colegislar geram maior
responsabilidade para o STF. Embutido em tal responsabilidade há um dever mais
rigoroso de prestar contas e de construir uma jurisprudência transparente que
forneça orientações normativas inteligíveis para os casos futuros. Essa é a
maior dívida pública do tribunal, mas só poderemos cobrá-la adequadamente se
evitarmos aquela confusão conceitual.
A constatação de que há um “STF legislador” ao lado do “STF
juiz” dá outra magnitude à Corte. É nessa perspectiva que se podem entender os
desafios da gestão do ministro Ayres Brito, que herda uma agenda explosiva ao
tomar posse na presidência do STF. Entre suas várias atribuições, caberá a ele
definir, em negociação com os outros ministros, os casos que entram na pauta de
julgamento e os que devem esperar. Esse poder de agenda precisa ser exercido
com coragem e sensibilidade para os prejuízos sociais oriundos da demora em cada
caso.
Não fará bem à saúde política do STF, por certo, deixar que
o mensalão prescreva. Apesar de não envolver complexidade jurídica
extraordinária, as pressões externas o tornam o caso mais delicado na história
recente do “STF juiz”. Mas isso não pode ofuscar as responsabilidades do “STF
legislador”, que promove impactos mais profundos no ordenamento jurídico. Nessa
pauta específica, grande quantidade de casos antigos continua à espera de
solução - uma combinação eclética que reúne de grandes temas de direitos
fundamentais a temas com amplas consequências na economia nacional. Embora lhe
reste pouco tempo na presidência, já que se aposenta no final do ano, Ayres
Britto tem a oportunidade de deixar uma marca histórica na jurisprudência da
Corte. A aprovação unânime do programa de cotas nas universidades, na semana
passada, deu uma amostra disso.
*Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito pela Universidade
de Edimburgo e em Ciência Política pela USP. Fonte: Estadão