Trechos do artigo de Eliane Brum* - publicado e disponível integralmente na Revista Época
Na semana passada, o Superior Tribunal de Justiça tomou uma
decisão inédita no Brasil: determinou a um pai o pagamento de R$ 200 mil por
“abandono afetivo”. |REsp 1159242|
Antonio Carlos Jamas dos Santos, empresário do ramo de
combustíveis de Sorocaba, no interior de São Paulo, terá de pagar à sua filha,
Luciane Nunes de Oliveira Souza, professora da rede municipal da mesma cidade,
por sua ausência como pai. Na sentença, manchete da maioria dos jornais
brasileiros de quinta-feira (3/5), a frase lapidar da ministra-relatora do
caso, Nancy Andrigui: “Amar é faculdade, cuidar é dever”. Nos dias posteriores,
Luciane deu entrevistas, em que chorou muito pelo abandono, assim como
comemorou a vitória dos filhos abandonados do Brasil, representada pelo seu
triunfo no tribunal. Minha pergunta: é possível – e desejável – que um pai seja
condenado por falta de afeto? [...]
Como um juiz pode determinar o que é “abandono afetivo” em
uma relação complexa como a de pais e filhos? E por que o Estado deveria fazer
isso? E por que deveríamos achar legítimo que o faça? [...]
São tempos curiosos. E o mais curioso é que a tese do
“abandono afetivo” seja acolhida na mesma época em que a família já não é mais
aquela. Nem sempre o pai biológico é aquele que assume a função paterna. Ou a
mãe biológica é aquela que desempenha a função materna. As combinações, hoje,
são as mais variadas. [...]
Que o pai biológico de Luciane se responsabilize ou seja
responsabilizado pelo sustento material da filha ninguém discute. Mas não é
possível obrigá-lo a ocupar a função paterna no sentido mais amplo e subjetivo.
Não há como obrigar ninguém a ser pai ou mãe no sentido pleno. Se o Superior
Tribunal de Justiça acredita ter esse poder e, para exercê-lo, bastaria obrigar
um pai a pagar um valor em dinheiro, está completamente equivocado.
Todos nós temos de lidar com o que consideramos ausência ou
falta de afeto, em várias medidas ao longo da vida. Faz parte da complexidade
das relações humanas. E faz parte do humano do nosso tempo acreditar que nunca
é amado o suficiente – não só pelos pais, mas pelos filhos, pelos namorados,
pelos maridos e pelas esposas, pelos amigos, pelo mundo inteiro.
Temos de lidar com as faltas inerentes a qualquer vida da
melhor forma que conseguirmos – e lidar com isso significa crescer. E crescer
significa parar de choramingar e seguir adiante. Acho grave que a Justiça
considere legítimo cristalizar essa mulher adulta no lugar de vítima e de
menina abandonada. E congelar esse homem no lugar de pai ausente e de algoz. A
vida é mais complicada do que isso. E um juiz tem o dever de compreender isso.
As implicações públicas da decisão do STJ, na minha opinião uma decisão
desvairada, ecoarão na vida de todos nós.
Em entrevista à rádio CBN, a ministra Nancy Andrighi afirmou
que a decisão do STJ “analisa os sentimentos das pessoas”. Se analisa,
ministra, errou. Não cabe ao STJ ou qualquer tribunal analisar “sentimentos” e
desferir punições pela ausência ou excesso de “sentimentos”. Isso colocaria os
juízes em lugar bastante indevido.
A ministra também disse: “Não se pode negar que tenha havido
sofrimento, mágoa e tristeza, e que esses sentimentos ainda persistam, por ser
considerada filha de segunda classe". Alguém conhece uma vida ou mesmo uma
relação entre pais e filhos que não tenha sofrimento, mágoa ou tristeza mútuas?
Como é que uma juíza pode comprar a versão de filha de “segunda classe” de uma
forma tão barata?
A ministra ainda disse mais: "Todo esse contexto
resume-se apenas em uma palavra: a humanização da Justiça”. Pelo contrário, me
parece que a decisão ignora justamente a complexidade e a ambivalência das
relações humanas. E desumaniza, ao compensar afeto com dinheiro – o que também
é mais um dado interessantíssimo da nossa época de relações
monetarizadas.
Luciane, por sua vez, afirma que não sente “raiva ou mágoa” do pai. Só quer “justiça”. Se colocar o pai no banco dos réus e dizer ao país inteiro que ele é um pai
ausente, relatando suas desventuras nos mínimos detalhes, não é uma vingança
monumental, eu não sei o que é. Mas que Luciane busque isso, podemos até
compreender. Que um tribunal legitime a vingança é que é surpreendente. O que
poderíamos estar nos perguntando, neste momento, é: como a gente faz para alertar
um juiz por “abandono da razão”? [...]
O problema é que dificilmente Luciane conseguirá seguir
adiante, paralisada como parece estar no mesmo lugar simbólico. E mais difícil
será agora que o tribunal a acompanha na ilusão de que é possível obrigar um
pai a ser pai. Ou obrigar um pai a amá-la. E não há dúvida de que ela sofre
muito com tudo isso. Tornar-se adulto, porém, é descobrir que o baralho nunca
estará completo, que nem mesmo existe um baralho completo. Temos de jogar com
as cartas que temos. E tentar recuperar cartas que jamais existiram, como se
elas estivessem apenas perdidas, não nos ajuda a viver melhor. Apenas nos
congela em um lugar infantil.
É um caso fascinante pelo que revela sobre o nosso tempo. E
há bem mais ainda para se ver nele. Por enquanto, ainda queria lembrar que, às
vezes, o melhor que pode acontecer a um filho é que certos pais e mães fiquem
bem longe.
*Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista.