Por Maria de Nazareth Agra Hassen*
É característica do discurso vazio a apropriação de
conceitos que causem impacto positivo, mesmo que o restante do discurso e
principalmente a prática não guardem relação com as atrativas locuções. A noção
de cidade para as pessoas tem se disseminado como posição política e visão de
mundo em várias cidades, ainda que nossos políticos, que recentemente passaram
a utilizá-la, incorram em contradição ao aliar a ideia de cidade para pessoas
com noções incompatíveis com o conceito. Como exemplo, temos as propostas de
mobilidade urbana, que em nada se aproximam do conceito original, utilizado e
praticado por Jan Gehl em cidades como Copenhagen, Melbourne, Estocolmo, Nova
York.
O conceito de pessoa aqui se opõe a máquina, a capital, a
lucro, a desenvolvimento e a progresso. Não há pessoa no centro de uma lógica
do capital e do progresso. Há pessoa na lógica da educação, do encontro, da
solidariedade e do compartilhamento. Nenhum candidato fala em decrescimento
econômico, por exemplo. E são conceitos associados pessoa e decrescimento. Não
se faz política para as pessoas juntamente com desenvolvimento econômico,
porque vão a direções opostas.
Uma cidade para pessoas promoveria estreitamento de
avenidas, não alargamento. Uma cidade para pessoas privilegiaria aqueles que se
deslocam a propulsão humana, como o pedestre e o portador de necessidades
especiais, depois o ciclista e só depois os veículos motorizados, privilegiando
o transporte público, confortável e pontual. As ciclovias e ciclofaixas não são
segregadas das ruas e avenidas, mas subtraem uma pista antes destinada a
veículos motorizados. Uma cidade para pessoas teria tempo de semáforo para o
pedestre atendendo a sua necessidade e não à do fluxo do trânsito. Aqueles que
vêm usando o conceito deveriam ler o livro Cities for People (Island Press,
2010), do famoso arquiteto Jan Gehl. Na publicação ainda não traduzida ou
publicada em língua portuguesa, Gehl sustenta, entre outras teses, que uma
cidade para pessoas não tem edifícios altos, pois o contato com a vida da cidade
só se pode obter até o quinto andar, e que a questão da densidade se resolve
com projetos arquitetônicos orientados por uma ideia humanista. O conceito não
se resume a retirar os carros das ruas e diminuir a altura das edificações.
Uma cidade para pessoas teria políticas de transformar
terrenos baldios em praças públicas, iluminadas e com equipamento para crianças
e adultos. Uma cidade para pessoas alargaria as calçadas e levaria segurança às
ruas para que as pessoas não precisassem se gradear, roubando espaços de
calçadas, e pudessem colocar suas cadeiras na rua e conviver com os vizinhos,
substituindo o lazer baseado em consumo pelo lazer baseado em trocas sociais.
Uma cidade para pessoas, ao proibir edifícios altos, investiria na convivência,
base da realização humana mais plena. Uma cidade para pessoas investiria na
prevenção à saúde e não apenas no tratamento. Uma cidade para pessoas
incentivaria os artistas de rua, investiria na sua formação e nas suas
condições de trabalho. Uma cidade para pessoas acolheria suas crianças e
adolescentes e criaria condições para que toda criança fosse aceita com suas
características e história de vida, e, portanto, os abrigos municipais não se
localizariam apenas nas periferias. Uma cidade para pessoas coibiria as descargas
abertas dos carros poluidores, multá-los-ia e os apreenderia. Uma cidade para
pessoas incentivaria o plantio de árvores e flores, não os coibiria. Uma cidade
para pessoas não asfaltaria ruas em vilas populares sem lhes garantir espaço
para as calçadas e para as praças, onde as crianças pudessem brincar e jogar.
Uma cidade para pessoas teria aulas de trânsito na escola em que as crianças
aprenderiam a se deslocar de bicicleta ou a pé, conhecendo seu bairro e os
demais. Uma cidade para pessoas institui as zonas 30 (regiões, em geral bairros
em que a velocidade máxima é 30 km/h) e veda o trânsito de automotores em ruas
em todos os bairros nos finais de semana.
Uma cidade para pessoas enfrenta desafios, cria inimigos nas
esferas do poder econômico, inverte a lógica da necrópole, instaura a
humanidade e recompõe a vida em espaço público aberto. Uma cidade para pessoas
elimina outdoors e outras formas de enfeamento e estímulo ao consumo. Uma
cidade para pessoas incentiva a diminuição da produção de lixo, orienta sobre a
separação e sobre a criação de compostagem em escolas, casas e apartamentos,
institui hortas comunitárias em todos os bairros.
As pessoas não precisam ser cuidadas, elas têm que se sentir
incluídas no cuidar. Uma cidade para pessoas facilita a vida do cidadão e
retira o poder do burocrata. Uma cidade para pessoas distribui o poder e
garante que as pessoas tenham nas ruas a extensão das suas casas e não um
parêntese entre espaços vitais.
Uma vez conhecido o compromisso com a cidade para pessoas,
algum candidato ainda se habilita?
*Doutora em Educação/UFRGS