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12.5.10

A crônica de um crime anunciado. Gerivaldo Neiva

Processo Número1863657-4/2008
Autor: Ministério Público Estadual
Réu: B.S.S

B.S.S é surdo e mudo, tem 21 anos e é conhecido em Coité como “Mudinho.”

Quando criança, entrava nas casas alheias para merendar, jogar vídeo-game, para trocar de roupa, para trocar de tênis e, depois de algum tempo, também para levar algum dinheiro ou objeto. Conseguia abrir facilmente qualquer porta, janela, grade, fechadura ou cadeado. Domou os cães mais ferozes, tornando-se amigo deles. Abria também a porta de carros e dormia candidamente em seus bancos. Era motivo de admiração, espanto e medo!

O Ministério Público ofereceu dezenas de Representações contra o então adolescente B.S.S. pela prática de “atos infracionais” dos mais diversos. O Promotor de Justiça, Dr. José Vicente, quase o adotou e até o levou para brincar com seus filhos, dando-lhe carinho e afeto, mas não teve condições de cuidar do “Mudinho.”

O Judiciário o encaminhou para todos os órgãos e instituições possíveis, ameaçou prender Diretoras de Escolas que não o aceitava, mas também não teve condições de cuidar do “Mudinho.”

A comunidade não fez nada por ele.
O Município não fez nada por ele.
O Estado Brasileiro não fez nada por ele.

Hoje, B.S.S tem 21 anos, é maior de idade, e pratica crimes contra o patrimônio dos membros de uma comunidade que não cuidou dele.

Foi condenado, na vizinha Comarca de Valente, como “incurso nas sanções do art. 155, caput, por duas vezes, art. 155, § 4º, inciso IV, por duas vezes e no art. 155, § 4º, inciso IV c/c art. 14, inciso II”, a pena de dois anos e quatro meses de reclusão.

Por falta de estabelecimento adequado, cumpria pena em regime aberto nesta cidade de Coité.

Aqui, sem escolaridade, sem profissão, sem apoio da comunidade, sem família presente, sozinho, às três e meia da manhã, entrou em uma marmoraria e foi preso em flagrante. Por que uma marmoraria?

Foi, então, denunciado pelo Ministério Público pela prática do crime previsto no artigo 155, § 4º, incisos II e IV, c/c o artigo 14, II, do Código Penal, ou seja, crime de furto qualificado, cuja pena é de dois a oito anos de reclusão.

Foi um crime tentado. Não levou nada.

Por intermédio de sua mãe, foi interrogado e disse que “toma remédio controlado e bebeu cachaça oferecida por amigos; que ficou completamente desnorteado e então pulou o muro e entrou no estabelecimento da vítima quando foi surpreendido e preso pela polícia.”

Em alegações finais, a ilustre Promotora de Justiça requereu sua condenação “pela pratica do crime de furto qualificado pela escalada.”

B.S.S. tem péssimos antecedentes e não é mais primário. Sua ficha, contando os casos da adolescência, tem mais de metro.

O que deve fazer um magistrado neste caso? Aplicar a Lei simplesmente? Condenar B.S.S. à pena máxima em regime fechado?

O futuro de B.S.S. estava escrito. Se não fosse morto por um “proprietário” ou pela polícia, seria bandido. Todos sabiam e comentavam isso na cidade.

Hoje, o Ministério Público quer sua prisão e a cidade espera por isso. Ninguém quer o “Mudinho” solto por aí. Deve ser preso. Precisa ser retirado do seio da sociedade. Levado para a lixeira humana que é a penitenciária. Lá é seu lugar. Infelizmente, a Lei é dura, mas é a Lei!

O Juiz, de sua vez, deve ser a “boca da Lei.”

Será? O Juiz não faz parte de sua comunidade? Não pensa? Não é um ser humano?

De outro lado, será que o Direito é somente a Lei? E a Justiça, o que será?

Poderíamos, como já fizeram tantos outros, escrever mais de um livro sobre esses temas.

Nesse momento, no entanto, temos que resolver o caso concreto de B.S.S. O que fazer com ele?

Nenhuma sã consciência pode afirmar que a solução para B.S.S seja a penitenciária. Sendo como ela é, a penitenciária vai oferecer a B.S.S. tudo o que lhe foi negado na vida: escola, acompanhamento especial, afeto e compreensão? Não. Com certeza, não!

É o Juiz entre a cruz e a espada. De um lado, a consciência, a fé cristã, a compreensão do mundo, a utopia da Justiça... Do outro lado, a Lei.

Neste caso, prefiro a Justiça à Lei.

Assim, B.S.S., apesar da Lei, não vou lhe mandar para a Penitenciária.

Também não vou lhe absolver.

Vou lhe mandar prestar um serviço à comunidade.

Vou mandar que você, pessoalmente, em companhia de Oficial de Justiça desse Juízo e de sua mãe, entregue uma cópia dessa decisão, colhendo o “recebido”, a todos os órgãos públicos dessa cidade – Prefeitura, Câmara e Secretarias Municipais; a todas as associações civis dessa cidade – ONGs, clubes, sindicatos, CDL e maçonaria; a todas as Igrejas dessa cidade, de todas as confissões; ao Delegado de Polícia, ao Comandante da Polícia Militar e ao Presidente do Conselho de Segurança; a todos os órgãos de imprensa dessa cidade e a quem mais você quiser.

Aproveite e peça a eles um emprego, uma vaga na escola para adultos e um acompanhamento especial. Depois, apresente ao Juiz a comprovação do cumprimento de sua pena e não roubes mais!

Expeça-se o Alvará de Soltura.

Conceição do Coité- Ba, 07 de agosto de 2008,
ano vinte da Constituição Federal de 1988.

Bel. Gerivaldo Alves Neiva
Juiz de Direito
http://gerivaldoneiva.blogspot.com/
gerivaldo_neiva@yahoo.com.br
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Gerivaldo Neiva. 12 de março de 2009.
Ouvir em Libras
Bruno é o personagem real da sentença “A Crônica de um crime anunciado” (clique aqui para ler). Por enquanto, ninguém lhe ofereceu uma oportunidade de trabalho. Então, conversamos com sua mãe e ele está ficando às tardes no fórum “fazendo mandados”. Vai ao banco, ao correio, serve água e cafezinho, essas coisas. No início houve uma certa resistência, mas hoje todos gostam dele. Outro dia, um advogado até lhe deu um terno de presente.

Pois bem, Bruno é surdo e mudo, mas sabe ler e escrever com alguma dificuldade. Era muito difícil, portanto, a comunicação com ele. Percebi que ele se sentia excluído, como um estrangeiro, sem entender e sem participar das conversas. Como se fôssemos todos analfabetos em sua língua.

Em vista disso, conversei com seu professor e fui informado que ele havia estudado Libras (Língua Brasileira de Sinais, adotada pela Lei nº 10.436/02) nas vezes que frequentava a escola. Como ele é muito esperto e inteligente, pensei que este seria um dos caminhos para sua inclusão. Descobri um site na internet que ensina Libras e chamei Bruno para conversar. Para minha surpresa, ele pediu o mouse e, com desenvoltura, passou a me mostrar como navegar no site e como fazer o sinal correto para cada palavra.

Com mais algumas visitas ao site, consigo me comunicar razoavelmente com Bruno e percebo o quanto fomos estúpidos nas tentativas de comunicação com ele. Nossos sinais eram todos errados e tinham significado absolutamente diverso do que pretendíamos dizer. Entendo agora sua expressão de desânimo quando tentávamos conversar com ele e, em seguida, seu silêncio e abatimento.

A falta de alguém para lhe ouvir em sua língua era uma forma terrível de exclusão. Isto aconteceu no fórum. Fiquei a pensar como seria na rua, no bairro, na escola.... É possível ser cidadão sem fala compreensível para os outros?

Hoje, Bruno se sente seguro quando fica ao meu lado e às vezes me pergunta, como se eu fora o intérprete, o que alguém está querendo lhe dizer. Sua auto-estima também melhorou muito. Ele agora tem com quem conversar e sabe que pode ser compreendido.

Passei o endereço do site para o pessoal do fórum e estou pedindo que todos dediquem alguns minutos diários em suas navegadas pela Internet para aprenderem um pouco de Libras. Se tivesse poderes para tanto, iria determinar que Libras fosse disciplina obrigatória nas escolas, concursos públicos, órgãos públicos, grandes empresas... Acesse o site clicando aqui... Uma boa dica – ensinada por Bruno – é clicar em “busca” (no alto à esquerda), digitar a palavra pretendida no quadro inferior à esquerda, depois clicar em “buscar”, depois clicar na palavra encontrada na coluna do meio e esperar o resultado. Existem outras opções de busca e interação. Bastam poucos minutos por dia...

Existem também outros sites na Internet sobre Libras, cursos, cds, dvds e até loja vendendo material didático. Pergunte ao google...

E assim, vamos misturando Libras com amor e música:

Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja
Ou se envaidece...
(Monte Castelo - composição de Renato Russo com recortes de Paulo (1Cor 13,1) e de Camões)
Postado por Gerivaldo Neiva. 12 de março de 2009.

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